Anatolyi Fedoruk, prefeito de Bucha, a 15km de Kiev, preferiu o silêncio, ao ser questionado pelo Correio sobre as denúncias feitas pela defensora pública da Ucrânia, Lyudmila Denisova. "Por esse tema ser muito difícil para as vítimas e suas famílias, eu me absterei de comentar, com a sua permissão", afirmou ele, por meio do WhatsApp, no início da tarde de ontem. "Cerca de 25 garotas e mulheres com idades entre 14 e 24 anos foram sistematicamente estupradas durante a ocupação russa, dentro de um porão de uma casa, em Bucha, durante um mês. Nove delas estão grávidas", contou a defensora pública à emissora britânica BBC. "Os militares russos disseram que as violentariam de uma forma que elas jamais iriam querer contato sexual com outro homem, a fim de preveni-las de terem crianças ucranianas."
Em um vilarejo situado 50km a oeste de Kiev, soldados russos invadiram uma casa e executaram um homem que tentou proteger a esposa e o filho, uma criança. A mulher foi estuprada repetidas vezes e ameaçaram ferir o garoto, caso ela resistisse. Depois de consumada a violência sexual, queimaram a casa e mataram os cães de estimação da família. Denisova também recebeu a denúncia sobre uma garota de 16 anos que foi violada diante da irmã, de 25, no meio da rua. A defensora relatou à BBC que os militares russos gritavam: "Isso acontecerá a toda prostituta nazista".
Os estupros seriam mais uma face de uma guerra que parece não poupar civis. "A Ucrânia é uma cena de crime", declarou o britânico Karim Khan, procurador do Tribunal Penal Internacional (ou Corte de Haia), ao visitar Bucha. "A Ucrânia é uma cena de crime. Estamos aqui porque temos motivos razoáveis para acreditar que crimes que estão dentro da jurisdição do tribunal estão sendo cometidos. Temos que atravessar a névoa da guerra para chegar à verdade", disse à imprensa durante a visita à cidade, onde foram encontrados centenas de corpos após a ocupação russa.
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"Pedaço da verdade"
"Na condição de ucraniano e de ser humano, eu me sinto insultado e devastado pelos relatos que chegam de Bucha e de outros locais. Eu entendo que isso é apenas um pequeno pedaço da verdade. O mesmo acontece em outros locais sob ocupação russa. Sinto dor e desespero", afirmou ao Correio o advogado ucraniano Oleksii Plotnikov, pós-doutor em direito e morador de Odessa. De acordo com ele, os crimes vistos durante a invasão russa podem ser considerados como uma indicação de genocídio. "Existe uma atmosfera de tolerância e de encorajamento da violência sexual contra o inimigo na sociedade russa. Além disso, a escala da violência claramente perpassa o estupro 'normal'. Não posso imaginar como violar uma garota de 9 anos até a morte possa ser algo sexualmente atraente para qualquer pessoa em estado mental normal. A crueldade dos casos registrados é chocante. Temos indicações de que o estupro tem sido usado como arma contra civis e como intimidação de toda a sociedade ucraniana."
Ativista do Centro para Liberdades Civis, em Kiev, Oleksandra Matviichuk disse ao Correio que soube de vários casos de violência sexual, depois de a ONG para a qual trabalha ter entrado em contato com vítimas diretas de estupro. "Mas nosso voluntários não estão preparados para lidar com casos tão sensíveis. Quando tomamos conhecimento dos casos de estupro, nós os transferimos para uma organização internacional que fornece assistência especializada às mulheres", disse.
Segundo Oleksandra, a violência sexual é o crime mais oculto da guerra. "Tenho documentado crimes de guerra por oito anos. Vi vários caso de mulheres que foram estupradas por homens que compartilhavam uma mesma cela. Quando eu conversava diretamente com elas, as vítimas omitiam o estupro, mas davam detalhes horríveis sobre a tortura", acrescentou. Oleksandra confirmou que os soldados russos também têm estuprado crianças.
Por e-mail, Kenneth Roth, diretor executivo da ONG Human Rights Watch (HRW), explicou que a entidade documentou um caso de estupro e tomou ciência de outras denúncias de violência sexual. "Até agora, vimos ocasiões do que poderia ser chamado de 'estupro oportunista'", comentou. Segundo ele, são necessárias mais evidências para identificar se o crime é usado de forma sistemática.
Também ontem, ao se encontrar com o colega ucraniano Volodymyr Zelensky, o presidente da Polônia, Andrzej Duda foi direto ao avaliar o conflito. "Isso não é uma guerra, é terrorismo. Se alguém envia aviões e soldados para bombardear zonas residenciais e matar civis, não é guerra. É crueldade, banditismo, terrorismo", criticou.
Duda viajou a Kiev acompanhado dos presidentes Alar Karis (Estônia); Egil Levits (Letônia) e Gitanas Nauseda (Lituânia). Depois de qualificar a guerra do presidente da Rússia, Vladimir Putin, como "genocídio", o líder americano, Joe Biden, telefonou para Zelensky e anunciou uma ajuda militar de US$ 800 milhões (ou R$ 3,7 bilhões) para a Ucrânia, a qual inclui veículos blindados, artilharia e helicópteros. Mais cedo, o Kremlin reagiu ao uso do termo "genocídio" por Biden, ao considerá-lo "inaceitável".
"Espero que Putin seja condenado à morte", desabafou ao Correio o jornalista Yevhen Kizilov, 46 anos, morador de Bucha cujo pai foi executado com um tiro na cabeça por soldados russos. "A Corte de Haia não comprou as mentiras de Putin sobre o massacre de Bucha", disse.