Quando a França começava a apuração dos votos, após o primeiro turno das eleições, os candidatos derrotados sabiam que não poderiam perder tempo. O percentual de votos acima do projetado pelas pesquisas para Emmanuel Macron, atual ocupante do Palácio do Eliseu, parecia longe de se impor como um refrigério eleitoral. No segundo turno, em 24 de abril, ele enfrentará a ultradireitista Marine Le Pen, do partido Reagrupamento Nacional (RN). Com 97% dos votos apurados, às 23h45 de ontem (4h45 de hoje em Paris), Macron tinha 27,35% dos votos, enquanto Le Pen aparecia com 23,97%.
O índice de abstenção ficou em 26%, perto do recorde registrado em 2002, de 28.4%. Na França, o voto não é obrigatório. Macron e Le Pen reeditarão a disputa de segundo turno de 2017, quando o atual presidente venceu por 66,10% contra 33,90%. Em jogo, o comando da segunda maior potência econômica da União Europeia (UE), atrás apenas da Alemanha.
Em entrevista à emissora France 2, Macron fez uma advertência ao eleitorado: "Quando a extrema-direita, em todas as suas formas, representa tanto no país, não podemos considerar que as coisas estão indo bem". "Sei que reúno alguns dos meus compatriotas que desejam se opor à extrema-direita. Mas também sei que muitos podem aderir ao nosso projeto, e isso significa saber acolhê-los e inventar um novo método", comentou. Pouco antes, em discurso a apoiadores, Macron alertou sobre a importância do segundo turno e destacou que "nada está decidido". "O debate que vamos ter durante 15 dias será decisivo para o nosso país e para a Europa", avisou.
"O que estará em jogo em 24 de abril será uma escolha de sociedade e de civilização", reagiu Le Pen aos resultados do primeiro turno, ao defender uma "grande alternância" de poder. Uma eventual vitória de Marine Le Pen é o pesadelo para a União Europeia. Isso porque a filha e herdeira política e Jean-Marie Le Pen, fundador do partido Frente Nacional, pretende que a França deixe o comando integrado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Entre os planos mais polêmicos de governo, estão a probição para que mulheres usem o véu islâmico e a expulsão de clandestinos, delinquentes e criminosos estrangeiros fichados como "perigosos".
O ultraesquerdista Jean-Luc Mélenchon, com 21,70% dos votos, não pediu votos explicitamente para o presidente. No entanto, o candidato do partido França Insubmissa fez questão de ser óbvio no apelo aos cidadãos. "Não se deve dar um único voto a Le Pen!", disse. Jean-Yves Camus — cientista político do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris), em Paris —, afirmou ao Correio que a decisão dos eleitores de Mélenchon de votarem em Macron para deterem Le Pen ou de se absterem será determinante para o segundo turno.
O escudo para barrar a extrema-direita de chegar ao topo do poder ganhou o reforço, ontem mesmo, do comunista Fabien Roussel; do ecologista Yannick Jadot; da prefeita socialista de Paris, Anne Hidalgo; e da direitista Valérie Pécresse, do partido Os Republicanos, que pediram votos a Macron. Juntos, os quatro obtiveram 13,2% dos votos no primeiro turno — uma importante reserva para Macron. "Votarei em consciência em Emmanuel Macron para evitar que Marine Le Pen chegue ao poder", anunciou Pécresse, sem orientar os voto dos correligionários. Ela associou Le Pen à discórdia, à falência e à impotência. O próprio Macron elogiou, em seu pronunciamento sobre as projeções, a "clareza" mostrada pelos adversários políticos, ávidos em impedir o avanço de Le Pen.
Ao contrário de Éric Zemmour, candidato da ultradireita e ainda mais radical do que Le Pen, que obteve 7,02% dos votos e instou os eleitores a apoiarem a candidata do Reagrupamento Nacional. "Tenho muitos desacordos com Marine Le Pen. Mas ela enfrenta um homem que traiu 2 milhões de imigrantes, que nunca mencionou o tema da identidade. Eu não me enganei de adversário", declarou.
Insuficiente
Para Camus, a barragem contra a extrema-direita pode ser insuficiente. "A direita radical ficou mais forte, em comparação com as eleições de 2017. Os partidos tradicionais não foram bem-sucedidos em 'repatriar' aqueles que desertaram em direção a Le Pen. Macron e Le Pen, agora, são as duas principais forças dominantes da política francesa", avaliou. O especialista lembra que a França realizará eleições legislativas em junho. "Por isso, não se pode dizer que temos uma 'nova política'", advertiu.
Ainda segundo Camus, a primeira pesquisa para o segundo turno, divulgada ontem, indica vitória por margem mínima para Macron: 51% contra 49%. Outras sondagens mostram diferença de até 10 pontos para o chefe de Estado. "Há possibilidade de os eleitores de Mélenchon não votarem em Macron. Le Pen certamente terá 80% dos votos de Zemmour. Ainda assim, a chance de ela vencer é pequena."
Ph.D. em ciência política e ex-professor das universidades Panthéon-Assas e Paris-Est Créteil (em Paris), Thomas Guénolé considera plausível que os ecologistas e os comunistas se oponham à extrema-direita, por sua inclinação à esquerda. "A porcentagem de votos de Macron acima do esperado provavelmente signfica que o voto útil em seu favor tem sido muito forte entre os eleitores da direita", afirmou ao Correio.
Guénolé concorda com Camus em relação à força do Reagrupamento Nacional, de Le Pen, e do Reconquête, de Zemmour. "Um a cada três eleitores franceses votou em um candidato da extrema-direita. Por si, isso representa uma vitória do neofascismo", observou.