Por volta das 3h de quinta-feira (31/3, hora local), Glib Mazepa, 35 anos, morador de Kharkiv (leste), foi acordado pela esposa. "Ela viu cerca de 10 foguetes cruzarem o céu. O clarão era parecido com o de um flash. Os projéteis caíram a uns 3,5km de nossa casa", contou ao Correio. Ao meio-dia, ele e a família voltaram a levar um susto. "Escutamos uma forte explosão, a uns 500m daqui. As últimas 48 horas foram de intensos bombardeios", desabafou. Quando falava com a reportagem, às 21h34 de quinta (16h34 em Brasília), Glib gravou o som de estrondos de uma barragem de foguetes Grad. Os relatos dele pareciam confirmar a denúncia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) de que as forças russas se posicionaram para bombardear o leste da Ucrânia.
"Segundo nossos dados de Inteligência, as unidades russas não estão se retirando, mas se reposicionando. A Rússia está tentando reagrupar (suas forças), reabastecer e reforçar sua ofensiva na região de Donbass", no leste da Ucrânia, declarou Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan. "Haverá mais ataque, com mais sofrimento."
Por sua vez, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, também demonstrou ceticismo em relação à informação do Kremlin sobre redução de tropas em algumas cidades. "Até agora, não há evidências claras de que ele esteja retirando todas essas forças de Kiev. Também há pistas de que ele está reforçando suas tropas no Donbass", explicou, ao admitir que está "um pouco cético".
De acordo com Biden, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, "parece estar isolado". "Há indícios de que demitiu ou colocou em prisão domiciliar alguns de seus assessores", comentou. Na quarta-feira, os serviços de inteligência do Reino Unido e dos EUA corroboraram informações de que Putin teria sido enganado por integrantes do Estado-Maior Conjunto da Rússia sobre a real situação no campo de batalha.
Sob pressão das sanções financeiras internacionais, Putin acenou, ontem, que pretende usar o gás como arma de retaliação. O Kremlin não descarta cortar o fornecimento do combustível para a União Europeia (UE), caso não receba pagamentos em rublo, a moeda da Rússia. O chanceler alemão, Olaf Scholz, rejeitou a ameaça russa sobre o gás e avisou que os membros da UE seguirão pagando em euros e dólares, em consonância com as cláusulas dos contratos. No campo diplomático, os diálogos entre negociadores de Kiev e de Moscou devem prosseguir hoje, no formato virtual. O ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlüt Cavusoglu, anunciou articulações para a viabilização de um encontro entre Serguei Lavrov e Dmitro Kuleba, respectivamente chefes das diplomacias russa e ucraniana. A segunda reunião de alto nível deve ocorrer "em uma ou duas semanas".
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Resgate
A expectativa para hoje envolve a retirada de centenas de civis da cidade de Mariupol (sudeste), onde a situação é considerada catastrófica por organizações humanitárias. O governo da Ucrânia enviou 45 ônibus para a localidade, a fim de realizar o resgate sob o comando do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, aproveitando a abertura de corredores humanitários e um cessar-fogo local anunciado pela Rússia. Cerca de 160 mil civis permanecem bloqueados em Mariupol, sob intensos bombardeios. Jason Straziuso, porta-voz da Cruz Vermelha, afirmou à reportagem que as equipes da entidade estão posicionadas com suprimentos médicos e outros itens, e de prontidão para facilitar a passagem segura do comboio de refugiados. "Estaremos prontos para liderar a operação, desde que todas as partes concordem com os termos exatos, incluindo a rota, o horário de início e a duração", comentou Straziuso.
Diretor do Instituto para Relações de Governo (em Kiev), Artem Oliinyk disse ao Correio que a Rússia fracassou em seu plano de capturar a Ucrânia e destruir as forças armadas. "Com o retorno de algumas tropas de áreas estratégicas, como Kiev e Chernihiv, os russos usarão recursos adicionais para consolidar a ocupação no sul do país, além de tentarem tomar o controle das regiões de Donetsk e Luhansk (leste). Vale lembrar que Mariupol pertence a Donetsk, e Moscou não recuará da tentativa de tomá-la", explicou. Ele acredita que as próximas semanas serão acompanhadas de hostilidades ativas no Sul e no Leste da Ucrânia, em paralelo ao processo de negociação na Turquia.
Segundo Oliinyk, a Ucrânia tem força para se defender, enquanto a Rússia deverá manter o seu potencial ofensivo. "Podemos esperar progresso nas negociações somente depois do colapso das capacidades militares russas. O principal teatro de operações será as regiões de Donbass e de Kharkiv. Os futuros contornos do sistema de relações no pós-guerra em toda a Europa dependerão desta campanha russa no leste. O Ocidente deve ajudar a Ucrânia a repelir o último ataque inimigo e a preservar sua soberania. Se a Ucrânia for derrotada, há risco de uma grande guerra na Europa, e os países-membros da Otan sofrerão com as consequências", advertiu o estudioso.