A economia internacional enfrenta uma onda de inflação global. A guerra na Ucrânia e os estímulos fiscais adotados pelos governos de todo o mundo em resposta à pandemia levaram a aumentos de preços não vistos há décadas.
Na América Latina, o impacto é especialmente doloroso.
De acordo com um relatório recente do FMI (Fundo Monetário Internacional), "para uma região com níveis historicamente altos de desigualdade, a erosão da renda real devido ao aumento dos custos de alimentos e energia aumentará a pressão econômica que as famílias vulneráveis ??já enfrentam".
A inflação nas cinco maiores economias latino-americanas atingiu o nível mais alto em 15 anos.
Mas, até agora, um país sul-americano conseguiu escapar.
Trata-se da Bolívia, onde o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) permaneceu surpreendentemente estável. Quando as curvas de inflação de países vizinhos e de boa parte do mundo dispararam, a Bolívia chegou a registrar deflação de 0,1% em março deste ano.
Enquanto a inflação acumulada em 12 meses até março na Bolívia estava em apenas 0,77%, o FMI estima que deve chegar a cerca de 10% para toda a região ao fim de 2022 e as principais economias da região sofrem com altas muito mais fortes (em taxas ao ano):
- Brasil: 11,3%
- Chile: 9,4%
- Colômbia: 8,5%
- México: 7,4%
- Uruguai: 9,4%
Os vizinhos Peru (6,8%) e Equador (2,6%) também foram afetados. E os números estratosféricos da Venezuela (284,4%) e da Argentina (55%) deixam os dois países distantes de todos os demais.
"É muito difícil explicar porque a Bolívia tem uma inflação tão baixa neste momento", diz Roberto Laserna, diretor do Centro de Estudos da Realidade Econômica e Social (Ceres), um centro de análise com sede em La Paz, à BBC Mundo.
Mas há vários motivos.
Paridade cambial
Ao contrário das moedas dos países vizinhos, por vezes sujeitas a fortes variações cambiais, a moeda nacional da Bolívia tem uma taxa de câmbio fixa em relação ao dólar norte-americano, fixada pelo então governo socialista de Evo Morales há mais de dez anos (US$ 1 = 6,96 boliviano).
Enquanto outros países da região tiveram que implementar mecanismos de controle cambial para sustentar sua moeda e há grandes diferenças entre a taxa de câmbio oficial e o preço real da moeda americana na rua, na Bolívia você pode comprar e vender dólares livremente, e a taxa de câmbio é mantida graças ao fato de o governo sustentá-la injetando dólares de suas reservas no mercado.
Hugo Siles, economista e ministro de Autonomias de Morales (a pasta é responsável pela distribuição de competências entre entes subnacionais, como departamentos, municípios e comunidades indígenas autônomas), disse à BBC Mundo que "os imensos recursos obtidos com a nacionalização de hidrocarbonetos pelo ex-presidente Morales permitiram seguir uma política de valorização do boliviano que tem contribuído para a baixa inflação".
O governo do atual presidente Luis Arce manteve a política de Morales de paridade cambial. A força relativa da moeda, em comparação com vizinhos como a Argentina, reduz o custo para a Bolívia de importar mercadorias.
No atual contexto de alta dos preços dos alimentos e do petróleo nos mercados internacionais, uma moeda forte é particularmente vantajosa.
Além disso, como diz José Luis Hevia, pesquisador da Fundação Milenio, "expectativas bem ancoradas em relação à taxa de câmbio fizeram com que as pessoas confiassem na moeda nacional", outro fator que favorece a estabilidade de preços.
O Brasil adotou o câmbio fixo entre 1964 e 1968, em 1986 e novamente durante o Plano Real entre 1994 e 1999. Apesar de possibilitar um melhor controle sobre a inflação, o modelo pode provocar diminuição das exportações e aumento de importações devido à valorização artificial da moeda.
No Brasil dos anos 1990, por exemplo, o aumento de importações provocado pelo câmbio fixo contribuiu para fechamento de indústrias, com perda de empregos no setor.
Desde 1999, o país adota o modelo de câmbio flutuante, em que a cotação da moeda varia de acordo com a oferta e a demanda do mercado, sem intervenção direta do Banco Central. A desvantagem desse modelo é que a desvalorização excessiva da moeda pode gerar inflação.
Subsídios e restrições à exportação
Produtores e consumidores em todo o mundo estão sendo atingidos pelo aumento dos preços dos combustíveis e dos alimentos.
Os bolivianos não sentiram esse golpe até o momento.
Na Bolívia, o preço da gasolina permanece estável em torno de US$ 0,50 por litro e os itens da cesta básica também não sofreram grandes aumentos.
Especialistas apontam generosos subsídios governamentais como a causa.
Apesar de os custos do petróleo continuarem a disparar nos mercados internacionais, o monopólio estatal que distribui gasolina na Bolívia absorveu totalmente esse impacto ao não alterar seu preço subsidiado.
Consequentemente, os produtores agrícolas não foram pressionados a repassar aos consumidores finais o aumento de seus custos de produção decorrente do aumento dos preços dos combustíveis, como ocorreu em outros países.
O país também conta com mecanismos que ajudam a conter a inflação no setor de alimentos, como a Empresa de Apoio à Produção de Alimentos (Emapa), estatal que presta apoio financeiro aos produtores agrícolas, e o Fundo Rotativo de Segurança Alimentar, que importa alimentos usando para isso recursos públicos e distribui no mercado para manter os preços baixos.
Em uma de suas ações recentes, o Fundo injetou 10 mil toneladas de farinha de trigo no mercado para evitar o aumento do preço do pão.
Lian Lin, analista da Unidade de Inteligência da revista britânica The Economist, garante que "essas coisas mantêm a inflação dos alimentos baixa e eles representam grande parte do total do Índice de Preços ao Consumidor".
Outro freio ao aumento de preços implementado pelo governo são os certificados de exportação que são exigidos para todos os produtos vendidos no exterior.
Quando seu abastecimento na Bolívia a um preço que as autoridades consideram justo não é garantido, eles podem negar o certificado de exportação, forçando assim um aumento de oferta no mercado interno que também alivia as pressões inflacionárias.
O Brasil adotou preços controlados de combustíveis principalmente durante o governo de Dilma Rousseff (PT), como uma forma de mitigar a inflação. A medida, no entanto, gerou prejuízos à Petrobras.
Desde 2016, a empresa adota o chamado preço de paridade internacional (PPI), com os combustíveis variando de acordo com a variação do barril de petróleo no mercado internacional e do câmbio, o que deixa o país sujeito às flutuações internacionais.
O país também abandonou nos últimos anos - principalmente desde 2016 - sua política de estoques de alimentos pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), um instrumento que ajudava o controle de preços no mercado interno.
Quanto tempo a estabilidade de preços na Bolívia pode durar?
A questão chave é por quanto tempo a Bolívia continuará se beneficiando de uma excepcional estabilidade de preços em um mundo em que a inflação se tornou o principal inimigo dos bancos centrais e uma das principais preocupações da população.
José Luis Hevia prevê que este ano haverá "uma alta da inflação devido ao contexto internacional, mas será relativamente moderado".
"Mas tudo vai depender de quanto tempo o modelo atual pode ser sustentado", acrescenta o especialista.
Muitos economistas alertam para os efeitos adversos da política de subsídios do governo boliviano e crescem as dúvidas sobre a sustentabilidade das contas públicas.
Um relatório recente do Banco Mundial estima que a dívida pública boliviana se aproximará de 80% do PIB (Produto Interno Bruto) até o final de 2022, mais de dez pontos percentuais acima da média regional.
O Ministério da Economia e Finanças respondeu com um comunicado no qual assegurou que a proporção de dívida em relação ao PIB se situou em 43,6% em fevereiro, "abaixo dos limites estabelecidos conforme recomendado".
O Executivo também afirmou que o "aumento explosivo da dívida interna registrado em 2020" foi causado pelo governo interino presidido por Jeanine Áñez, que assumiu o país após a queda de Evo Morales e hoje está presa acusada de terrorismo, sedição e conspiração.
Hevia indica que "o tipo de câmbio fixo tem sido muito eficaz no controle da inflação, mas tem efeitos indesejados na economia porque desestimula a produção local ao baratear as importações e requer um grande conjunto de recursos externos para sustentá-lo".
E nesse uso de recursos para sustentar a moeda nacional é percebido, há muito tempo, um notável aumento do déficit fiscal e um declínio sustentado das reservas internacionais do Banco Central da Bolívia.
Até 2015, a Bolívia acumulava receitas principalmente com exportações de gás e havia até US$ 15 bilhões nas reservas do Banco Central. Mas esse valor vem caindo e em dezembro de 2021 era de US$ 4,7 bilhões.
Com um déficit fiscal que, segundo projeções do Banco Central, encerrará o ano em 8,5% do PIB, é preocupante que o país continue consumindo suas reservas para pagar os subsídios que mantêm os preços sob controle e que devem custar ao Estado cerca de US$ 4 bilhões por ano.
Há outros fatores de preocupação. Roberto Laserna, do Ceres, afirma que "a nacionalização dos hidrocarbonetos gerou um grande volume de recursos no curto prazo, mas no médio prazo desestimulou o investimento estrangeiro".
Isso resultou em anos de queda na produção de gás e a Bolívia não conseguiu cumprir alguns dos compromissos de fornecimento assumidos com a vizinha Argentina, com a qual estão sendo negociados novos acordos.
O ex-ministro Siles não vê motivos para preocupação. "A Bolívia vende gás, eletricidade e matérias-primas como soja ou minerais, cujo preço no mercado internacional também está subindo, o que trará mais recursos."
E prevê: "O governo não vai eliminar subsídios ou alterar o câmbio porque isso significaria transferir o ônus para a grande maioria da população".
Nem todos estão convencidos.
Lian Lin acredita que "a Bolívia ainda terá algum tempo de vento a favor do preço do gás, mas no futuro a taxa de câmbio terá que ser reduzida pelo menos um pouco e haverá algum tipo de desvalorização gradual e cortes nos programas do governo".
O tempo dirá qual previsão está correta.
No momento, a última emissão da dívida boliviana, em fevereiro passado, estava a uma taxa de juros de 7%, um aumento na rentabilidade exigida aos títulos que geralmente está associado a uma menor confiança dos investidores e que evidencia a maior dificuldade que o Estado boliviano encontra agora para se financiar.
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