As atrocidades cometidas pelas forças russas na Ucrânia provocaram acusações generalizadas de crimes de guerra - com algumas vozes argumentando que Moscou foi ainda mais longe.
"Isso é um verdadeiro genocídio, o que tem sido visto aqui", disse o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em Bucha, onde pelo menos 500 pessoas foram encontradas mortas desde que os russos partiram.
O primeiro-ministro da Polônia, Mateusz Morawiecki, concorda que os assassinatos em Bucha e outras cidades próximas à capital Kiev "devem ser chamados de atos de genocídio e tratados como tal".
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O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, disse que os ataques a civis em Bucha não "parecem muito aquém do genocídio".
Por sua vez, o presidente dos EUA, Joe Biden, também acusou as forças russas de cometer atos de "genocídio" na Ucrânia. Ele disse que o presidente russo, Vladimir Putin, estava tentando "eliminar a ideia" de uma identidade ucraniana.
Mas muitos países pararam de usar a palavra para descrever o que está acontecendo na Ucrânia. O presidente francês, Emmanuel Macron, disse estar relutante em usar o termo e alertou contra uma "escalada de retórica".
Há razão para acusar as forças russas de cometer o que foi chamado de "crime de todos os crimes"?
O que é genocídio?
O genocídio é amplamente visto como o mais grave crime contra a humanidade.
É definido como um extermínio em massa de um determinado grupo de pessoas - por exemplo, o assassinato de 6 milhões de judeus no Holocausto da Segunda Guerra Mundial.
A Convenção sobre Genocídio da ONU define genocídio como cometer qualquer um dos seguintes atos "com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso":
-Matar membros do grupo
-Causar danos físicos ou mentais graves a membros do grupo
-Infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial
-Impor medidas com a intenção de prevenir nascimentos dentro do grupo
-Transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo
A Rússia cometeu genocídio na Ucrânia?
Não há um consenso sobre isso.
Eugene Finkel, professor associado de assuntos internacionais da Universidade Johns Hopkins, acredita que o genocídio está em andamento na Ucrânia. Ele diz que há evidências de assassinatos, realizados em Bucha e outras regiões, de pessoas apenas pelo fato de por serem ucranianos.
"Não é apenas matar pessoas, é atingir um grupo de identidade nacional", diz ele.
No entanto, é a retórica vinda de Moscou que se transforma em uma intenção genocida, diz Finkel.
Ele aponta para um artigo intitulado "O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia?", publicado na semana passada pela agência de notícias estatal russa Ria.
O artigo argumenta que a Ucrânia "é impossível como Estado-nação" e até mesmo seu nome "aparentemente não pode ser mantido". A elite nacionalista ucraniana "precisa ser liquidada, sua reeducação é impossível", argumenta o redator do artigo, Timofei Sergeytsev.
Ele baseia a teoria dele na afirmação infundada de que a Ucrânia é um estado nazista, argumentando que uma parte significativa da população também é culpada porque são "nazistas passivos" e, portanto, cúmplices. Após uma vitória russa, essas pessoas deveriam ser reeducadas com duração de pelo menos uma geração. E isso "inevitavelmente significaria desucranização".
"Para mim, a mudança de tom nas últimas semanas na Rússia, especialmente entre as elites, foi o ponto de inflexão que chamamos de limiar de intenção. Não apenas para destruir o Estado, mas para destruir uma identidade", diz Finkel.
"O objetivo da guerra é a desucranização... eles não estão focando no Estado, eles estão focando nos ucranianos."
Gregory Stanton, presidente-fundador do Genocide Watch, diz que há provas "de que o exército russo está de fato pretendendo destruir, em parte, o grupo nacional ucraniano".
"É por isso que eles estão mirando em civis. Eles não estão mirando apenas em combatentes e militares."
Ele diz que as alegações do presidente Putin no período que antecedeu a invasão, de que a guerra de 8 anos no leste da Ucrânia parecia um genocídio, foram o que alguns estudiosos chamam de "espelhamento".
"Muitas vezes o perpetrador do genocídio acusará o outro lado - as vítimas-alvo - de pretender cometer genocídio antes, de fato, e o perpetrador então o faz. Foi o que aconteceu neste caso."
'Evidências ainda não são fortes o suficiente'
Mas outros especialistas no campo do genocídio dizem que é muito cedo para incluir as atrocidades russas nessa categoria.
De acordo com Jonathan Leader Maynard, professor de política internacional no King's College London, a evidência ainda é muito pouco clara sob a estrita redação da Convenção do Genocídio.
Isso não significa necessariamente que o genocídio não esteja ocorrendo - ele diz que é "muito claro" que as atrocidades estão acontecendo - apenas a barra ainda não está clara.
"É possível que essas atrocidades sejam genocidas ou possam escalar no futuro para um genocídio, mas as evidências ainda não são fortes o suficiente", diz ele.
No entanto, ele aponta para a retórica "profundamente preocupante" do presidente da Rússia, negando a existência histórica da Ucrânia como uma nação independente. Isso ilustra uma "maneira genocida de pensar", diz ele, onde Vladimir Putin acredita que a Ucrânia "não é real, então eles não têm o direito de existir".
O risco de genocídio está aumentando devido a esse tipo de pensamento, diz ele. "Mas não podemos presumir automaticamente que essa retórica levará a ações realizadas no campo".
Para Philippe Sands, parece haver indícios de crimes de guerra. Na visão dele, o ataque a civis e o cerco da cidade portuária de Mariupol parecem ser um crime contra a humanidade.
No entanto, o professor Sands, que é diretor do Centro de Cortes e Tribunais Internacionais da University College London, diz que, para provar o genocídio sob a lei internacional, um promotor deve estabelecer a intenção de destruir um grupo, no todo ou em parte. E os tribunais internacionais estabeleceram um limite muito alto para provar isso.
A intenção pode ser estabelecida por evidências diretas, nas quais os perpetradores dizem que estão matando pessoas para destruir o grupo. Mas o professor Sands acredita que é improvável que isso exista no caso da Ucrânia.
A intenção também pode ser identificada a partir de um padrão de comportamento, "mas essa é uma decisão difícil", acrescenta. Ainda não se sabe o suficiente das intenções dos russos, que supostamente cometeram atrocidades.
"Ir a uma aldeia e executar uma proporção significativa de homens adultos de um grupo nacional ou religioso em uma base aparentemente sistemática - se foi o que aconteceu em Bucha - pode ser um indicador de intenção genocida", diz ele.
"Mas, neste estágio, não temos provas suficientes para saber o que exatamente aconteceu e por quê. Acho que é certo estar extremamente alerta aos sinais de intenção genocida, à medida em que a guerra se move para o leste da Ucrânia e se torna cada vez mais brutal."
Alex Hinton, diretor do Centro para o Estudo do Genocídio e Direitos Humanos da Universidade Rutgers, diz que crimes de guerra e crimes contra a humanidade certamente parecem estar ocorrendo na Ucrânia por meio de bombardeios e ataques contra civis.
O presidente Putin está exibindo uma retórica genocida, diz Hinton, mas isso precisará estar claramente ligado às atrocidades no local para provar a intenção genocida.
"Eu não diria que isso é genocídio como o (presidente) Zelensky afirmou, mas eu diria que os sinais de alerta estão lá. A ameaça de risco é muito alta", diz ele.
Se a Rússia está ou não cometendo genocídio não deve influenciar o que Alex Hinton vê como atrocidades claras cometidas pelas forças russas na Ucrânia.
"Sabemos que crimes de atrocidade estão ocorrendo e isso obriga uma ação. Não deveria ser um caso em que achamos que tem que ser genocídio para fazer mais."
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