Promessas, concessões e otimismo comedido marcaram a rodada de negociações entre Ucrânia e Rússia, em Istambul, sob a mediação do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. Os russos se comprometeram a reduzir "drasticamente" a ofensiva em Kiev e nos arredores, enquanto os ucranianos admitiram desistir da adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em troca de um mecanismo de garantia internacional de segurança. Para David Arakhamia — negociador enviado pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky —, as nações garantidoras atuariam inspiradas no capítulo 5 do Tratado do Atlântico Norte, segundo o qual uma agressão a um país-membro da aliança é um ataque contra todo o pacto. Pela primeira vez, Arakhamia reconheceu "condições suficientes" para uma cúpula entre Zelensky e o homólogo russo, Vladimir Putin. Em mensagem difundida por vídeo, o próprio Zelensky classificou como "positivos" os sinais ouvidos nas negociações, mas lembrou que eles não calam as explosões das bombas russas.
O vice-ministro da Defesa da Rússia, Alexender Fomín, revelou que "as negociações sobre um acordo de neutralidade e o status não nuclear da Ucrânia entram em uma dimensão prática". A questão da neutralidade da Ucrânia é uma das principais demandas de Moscou para pôr fim à guerra. Zelensky se disse disposto a aceitar os termos, acompanhados de garantias de segurança e de desnuclearização do Estado. Em relação à catástrofe humanitária na cidade portuária de Mariupol (sudeste), onde pelo menos 5 mil civis teriam sido mortos, Putin exigiu que os milicianos nacionalistas acabem com a resistência e deponham armas.
O anúncio da Rússia foi recebido com cautela pela comunidade internacional e pelos analistas. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse "esperar ações" por parte de Moscou. "Veremos se eles (russos) seguirão o que sugerem. Tive uma reunião com os líderes de três outros aliados da Otan — França, Alemanha e Reino Unido — e parece haver um consenso sobre vermos o que a Rússia tem a oferecer", comentou o democrata. Na tarde de ontem, o Pentágono declarou que a Rússia está "reposicionando" suas forças perto de Kiev, mas negou chamar a manobra de "retirada". "Todos deveríamos estar preparados para ver uma grande ofensiva contra outras áreas da Ucrânia", declarou o porta-voz do Departamento de Defesa, John Kirby. "Isso não significa que a ameaça contra Kiev acabou."
Por sua vez, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, afirmou que julgará Putin e seu regime "por suas ações, não pelas palavras". "Houve alguma redução dos bombardeios russos no entorno de Kiev, principalmente porque as forças ucranianas têm sido bem-sucedidas em repelir com sucesso as ofensivas russas no noroerste da capital", explicou o premiê. "Não queremos ver nada mais do que a completa retirada das forças da Rússia da Ucrânia."
Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia), adverte sobre a impossibilidade de determinar se o anúncio feito pela Rússia em Istambul é verdadeiro ou não. "Moscou tem declarado uma coisa e feito outra totalmente diferente. Desde o início da guerra, os russos dizem que não estão atacando a Ucrânia. Chegaram a nos acusar de usarmos mísseis de cruzeiro contra nós mesmos."
O especialista admitiu ao Correio uma possível operação de disfarce, por parte da Rússia. No entanto, Haran não descarta que, ciente de problemas no front, o Kremlin possa utilizar uma pausa nos combates para recrutar soldados e retomar a ofensiva. Outra possibilidade envolveria o uso de recursos limitados para um ataque a Donbass, no leste da Ucrânia. "Aqui, em Kiev, houve várias explosões, hoje (ontem). Então, não sei o que esse anúncio russo significa", desabafou. Haran concorda que a Ucrânia necessita de garantias reais de segurança. "Mas, não pode ser um pedaço de papel ou um memorando sem valor. As garantias precisam ser dadas pelas grandes potências, além de Alemanha, Polônia e Turquia."
"Já vimos esse roteiro antes", alfinetou Peter Zalmayev, diretor da ONG Eurasia Democracy Initiative, baseada em Kiev. Segundo ele, antes das rodadas de negociação de paz, os russos costumam emitir uma sinalização positiva. "Antes da invasão, Putin anunciou um recuo militar. Na verdade, reagrupou forças, aumentou o contingente na fronteira e atacou a Ucrânia. Seria muito ingênuo considerar as palavras de Moscou agora", advertiu. Ele acredita em um estratagema do Kremlin para ganhar tempo, se rearmar e tentar capturar a capital ucraniana.
Bombardeios
Apesar do progresso das negociações, os bombardeios prosseguiam. Em Mikolaiv (sul), um ataque contra a sede do governo regional deixou 12 mortos. Zelensky condenou o bombardeio e assegurou que nenhum alvo militar foi atacado. Moradora de Kiev, a parlamentar ucraniana Inna Sovsun (leia Duas perguntas para) ridicularizou o anúncio feito pela Rússia em Istambul. "Eu, literalmente, posso sentir essa 'redução' nos ataques. Todas as possíveis sirenes antiaéreas foram acionadas na capital. Depois disso, escutei explosões. Você nunca pode confiar em terroristas!", criticou, por e-mail.
Para se proteger, Inna tomou uma atitude radical. "Na noite passada, dormi dentro do closet, por não ter janelas, apenas paredes. Milhares de ucranianos têm que viver nas estações de metrô ou em porões frios e úmidos durante semanas, enquanto esperam não morrer", relatou.