Glib Mazepa, 35 anos, não se surpreendeu com a foto que abre esta página. "É mais uma explosão comum", disse ao Correio, ao ser questionado sobre o contexto da imagem do homem em fuga, próximo a um carro e a uma casa em chamas. Os dias têm sido assim em Kharkiv, no nordeste da Ucrânia. "O aeroporto foi atacado de madrugada; um hipermercado, pela manhã... Também dispararam contra uma fila de pessoas que buscavam ajuda. Seis civis morreram", comentou o pós-doutorando. Ao norte, a 183km, em Sumy, o cientista político Mykola Nazarov contou que a cidade foi bloqueada pelas tropas russas. "Está muito difícil em Trostyanets, que vive o horror da ocupação. Okhtyrka tem sido bombardeada de forma incessante, e a destruição é enorme." Um anúncio do Estado-Maior Conjunto da Rússia causou surpresa e foi visto por Glib, por Mykola e por outros ucranianos como um atestado de fracasso da guerra de Vladimir Putin.
O comando militar de Moscou informou que, a partir de agora, o objetivo das tropas russas será a "libertação" de Donbass, região no leste da Ucrânia, de língua majoritariamente russa. De acordo com Sergei Rudskoy, vice-chefe do Estado-Maior, "os principais objetivos da primeira fase da operação foram alcançados". Ele assegurou que "a capacidade de combate das forças ucranianas foi significativamente reduzida".
Para Arteem Oliinyk, diretor do Instituto de Relações de Governo, em Kiev, ocorre exatamente o oposto. "Na quarta-feira passada, vários bairros da capital foram atingidos com foguetes 'Grad'. Hoje (ontem), foi impossível os russos realizarem esse tipo de ataque. O Exército ucraniano os afastou para uma região a mais de 70km de Kiev. As sirenes antiaéreas soavam o dia todo, enquanto a Rússia lançava mísseis contra as cidades de Vinnytsia, Dnipro e Zhytomir. Está claro que a atividade inimiga diminui. Os russos dispararam mais de 1,2 mil mísseis e perderam 200 aeronaves e helicópteros", disse à reportagem.
Oliinyk acredita que autoridades do Kremlin são forçadas a reconhecer o fracasso da guerra declarada. "Não se trata apenas da perda sem precedentes. Com a prontidão da Europa e dos EUA em impôr sanções, a economia russa está inviável. Nosso presidente (Volodymyr Zelensky) tem repetido que as negociações não podem se basear na integridade territorial do país. Donbass, Crimeia e Sevastopol pertencem a nós, ucranianos", comentou.
Pela primeira vez, a Rússia divulgou números sobre suas supostas baixas no front: o próprio Rudskoy, do Estado-Maior Conjunto, declarou que 1.351 soldados russos morreram e 3.825 ficaram feridos. As estimativas são muito aquém daquelas divulgadas pela Ucrânia — 15,8 mil militares mortos ou feridos.
Em demonstração de apoio e de solidariedade aos refugiados, o presidente dos EUA, Joe Biden, visitou a cidade polonesa de Rzeszow, a 70km da fronteira com a Ucrânia e aproveitou para alfinetar a China, ao destacar a "resiliência" e a "coragem" do povo ucraniano. "Quando você vê uma mulher de 30 anos parada em frente a um tanque com uma arma (...), estamos falando da Praça de Tiananmen, isso é a praça de Tiananmen ao quadrado", referindo-se às manifestações de 1989 em Pequim, que levaram ao Massacre da Praça da Paz Celestial.
Ao discursar para soldados norte-americanos do flanco leste da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Biden advertiu que, na Ucrânia, corre perigo um valor que atravessa fronteiras. "O que está em jogo não é apenas o que estamos fazendo aqui para ajudar o povo ucraniano e impedir que o massacre continue, mas, além disso, é a liberdade dos filhos e dos netos dos ucranianos", declarou Biden.
O presidente voltou a chamar Putin de "criminoso de guerra" e alertou que as consequências do conflito poderão se estender para todo o mundo. A visita a Rzeszow foi interpretada também como gesto de força da Otan.
A agência France-Presse informou que as tropas russas foram forçadas a recuar para regiões no entorno de Kiev e enfrentaram uma contra-ofensiva em Kherson (sul). Forças ucranianas tentavam, ontem, retomar o controle da única grande cidade em posse dos russos, desde 24 de fevereiro. Também ontem, as autoridades ucranianas revelaram que ao menos 300 civis morreram no bombardeio a um teatro que servia de abrigo a mais de mil pessoas, em Mariupol (leste).
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Derrota
Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia), entende a manobra russa como "a derrota dos planos iniciais de Putin". "As tropas do Kremlin pretendiam capturar Kiev, derrubar Zelensky e estabelecer repúblicas populares em toda a Ucrânia, mas fracassaram. Perceberam que não podem tomar a capital e se veem em apuros em outras cidades. O que tentam fazer, agora, é capturar Donbass", disse. O estudioso prevê que os soldados russos tentarão controlar Mariupol e utilizar um eventual domínio sobre Donbass como propaganda de vitória. "Será uma tarefa difícil para os russos, pois as forças de resistência ucranianas têm liberado partes dos territórios ocupados."
Peter Zalmayev — diretor da ONG Eurasia Democracy Initiative (em Kiev) — alerta sobre implicações políticas para Putin. "Ele precisará explicar aos seus cidadãos porque Donbass vale as vidas de 15 mil soldados e os custos das sanções financeiras, que têm minado a economia russa", afirmou ao Correio. Além de se mostrar cético com a guinada na estratégia da Rússia, Zalmayev vê um "momento muito perigoso". "Especialistas creem que, em breve, Putin lançará mão de armas não convencionais, como químicas ou nucleares táticas. Acho que a manobra anunciada hoje (ontem) visa ganhar tempo, reagrupar tropas e lamber as feridas."