Conexão Diplomática

Algo no ar além de aviões de caça

Sem sinais à vista de uma solução para o conflito na Ucrânia, é a movimentação dos diferentes atores, no palco ou atrás das cortinas, que permite entrever alguns dos desdobramentos possíveis da guerra, seja qual for o desfecho das ações militares. Um aspecto em particular — o das operações aéreas — parece expor os limites da solidariedade ocidental com o governo de Kiev, assim como a atenção das grandes potências para os riscos de um conflito direto com a Rússia, detentora de arsenal nuclear ao qual apenas o dos EUA pode ser equiparado.

Foi especialmente significativa a mudança de tom de alguns governos que, no momento inicial, se mostraram dispostos a fornecer ao governo ucraniano armamento e recursos para que resista à invasão russa. Nos últimos dias, a Alemanha recusou uma oferta da Polônia para transferir seus caças MiG, de fabricação russo-soviética, para a base aérea americana de Ramstein, em território alemão, de onde poderiam ser enviados à Ucrânia. Também Washington pisou no freio na questão essencial do reforço aéreo pedido insistentemente pelo presidente Volodymyr Zelensky.

Nas principais capitais do bloco ocidental, firmou-se um consenso segundo o qual "o céu é o limite" no envolvimento com a guerra. Ele se expressa, igualmente, na recusa taxativa a impor na Ucrânia uma zona de exclusão aérea — o que implica impedir que a aviação russa exerça a supremacia que tratou de assegurar desde os primeiros movimentos da invasão. Para se contrapor a ela, a Otan teria de confrontar diretamente não apenas os caças russos, mas também os sistemas de radares e defesa antiaérea.

Fila de espera

Tão sintomática quanto a reticência da Otan para se contrapor efetivamente à supremacia aérea da Rússia foi a resposta da União Europeia ao pedido de Zelensky para que a Ucrânia fosse aceita imediatamente no bloco. Reunidos em Versailles, na França, sede do tratado que pôs fim à 1ª Guerra Mundial — a um preço arrasador para a Alemanha —, os chefes de governo da UE reafirmaram que o ingresso da Ucrânia seguirá a tramitação normal, sem pular etapas.

Por trás da decisão, como de costume, está a costura feita nos bastidores pelos líderes das duas potências que pilotam a locomotiva europeia. Por razões ligeiramente distintas, ambas de ordem doméstica, o chanceler da Alemanha e o presidente da França compartilham o interesse em agir na Ucrânia como bombeiros. O ingresso na UE está na origem da instabilidade política que irrompeu na virada de 2013 para 2014 e precipitou a guerra na fronteira leste — entre o governo de Kiev e separatistas alinhados com a Rússia de Vladimir Putin.

Corda-bamba

Não por acaso, Olaf Scholz se desdobrou, na semana que termina, em longos telefonemas para o Kremlin. No calor das reações iniciais à invasão russa, o chefe de governo pôs em marcha a mudança de rumo mais profunda na diplomacia de Berlim desde o fim da 2ª Guerra, em 1945: pela primeira vez, armas alemãs serão enviadas a uma região de conflito. A manobra teve o auxílio luxuoso dos Verdes, ecopacifistas por origem refratários à Otan, mas hoje a segunda força na coalizão liderada pela social-democracia — representada no Ministério das Relações Exteriores pela dirigente Annalena Baerbock.

Scholz, agora, estuda a conta a pagar pelo alinhamento às sanções contra a Rússia, comandadas da Casa Branca por Joe Biden. A economia da Europa, e da Alemanha em particular, depende da importação de gás natural russo. Duas semanas de guerra começam a fazer impacto nos preços dos combustíveis, e qualquer perspectiva real e prática de substituir o fornecedor passará sem desvios pela alta dos custos.

Olho na urna

A França também trata de absorver as ondas de choque inflacionárias do tira-teima com Putin, mas o olhar de Emmanuel Macron tem um horizonte mais imediato que o do parceiro alemão. Em maio, o presidente disputa nas urnas um segundo mandato no Palácio do Eliseu.

Para ele, a maratona de telediplomacia com o Kremlin atende também a um cálculo político. Macron, que até aqui afinou o tom do discurso com Scholz, aposta a reeleição na chance de despontar como artífice de um acordo que possibilite ao menos viabilizar um cessar-fogo. Terá pela frente uma extrema-direita que, até aqui, se manifestou simpática ao Kremlin e avessa a Washington e à Otan.

Corre por fora

Nas entrelinhas das histórias diárias de sofrimento humano nas cidades bombardeadas e na romaria dos refugiados à procura de uma segurança mínima, o equilíbrio de forças no cenário global passa por uma redefinição. Não apenas os movimentos diplomáticos ostensivos deixam a sua marca, mas também a ação discreta de quem opta por manter-se à maior distância possível da linha de frente.

Na China, enquanto o presidente Xi Jinping e o chanceler Wang Yi manobram no sistema multilateral — leia-se ONU — na linha da "turma do deixa-disso", a área econômica do governo estuda a possibilidade de ocupar o vácuo deixado na Rússia pela saída de numerosos e importantes conglomerados ocidentais.

Entre outros alvos considerados, a compra da participação acionária alienada na gigante Gazprom e em outras empresas do estratégico setor energético. O extenso acordo de parceria firmado por Xi com Putin em Pequim, na abertura da Olimpíada de Inverno, prevê o fornecimento de gás russo por décadas — para garantir a arrancada da China rumo ao alto do pódium da economia mundial.

Na surdina

Em tempo: andou também por Moscou, sem chamar a atenção, o atual CEO da Gazprom, o ex-chanceler alemão Gerhard Schröder. Correligionário de Scholz no Partido Social Democrata (SPD), Schröder chefiava o governo quando foi negociada a construção do sistema de gasodutos Nordstream, e hoje preside também o consórcio que toca o projeto — cuja finalidade é transportar o gás sem passar por território ucraniano.