Guerra no leste europeu

Ucrânia admite que pode desistir da adesão à Otan para chegar a um acordo de paz

Presidente Volodymyr Zelensky afirma, pela primeira vez, que a Ucrânia pode debater um compromisso sobre região separatista. Forças de Moscou são acusadas de atacar corredor humanitário em Mariupol

Pela primeira vez, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, admitiu moderação sobre uma possível adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e uma negociação em busca de um compromisso sobre o status de Donbass — região controlada pelos russos, no leste da ex-república soviética. "Em relação à Otan, moderei minha posição sobre essa questão há algum tempo, quando entendemos que a aliança militar não está pronta para aceitar a Ucrânia", declarou, antes de alfinetar a Otan. "A aliança tem medo de qualquer controvérsia e de um confronto com a Rússia."

Zelensky afirmou que pode debater itens sobre "os territórios ocupados temporariamente e as pseudorrepúblicas não reconhecidas por ninguém além da Rússia". Podemos achar um compromisso sobre como esses territórios viverão daqui em diante", acrescentou. As declarações, feitas na madrugada de ontem à rede de TV norte-americana ABC, sinalizariam a primeira indicação de uma saída diplomática para a guerra. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, condiciona a suspensão da "operação especial" na Ucrânia à desmilitarização de Kiev; ao reconhecimento das repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk; e à independência da Crimeia, anexada em 2014 por Moscou. 

Horas mais tarde, o próprio Zelensky fez um discurso histórico no Parlamento britânico, por meio de videoconferência, em que adotou um tom de confrontação. Ele invocou o ex-primeiro-ministro Winstor Churchill (1940-1945) e foi aplaudido de pé. "Não nos renderemos e não perderemos. Lutaremos até o fim, no mar, no ar. Continuaremos lutando por nossa terra, custe o que custar, nas florestas, nos campos, nas costas, nas ruas", declarou. Em junho de 1940, no momento em que a Alemanha nazista conquistava territórios na Europa, Churchill tinha feito uma promessa parecida em discurso ao Parlamento, em Westminster.

Zelensky lembrou que a Ucrânia mergulhou em uma guerra não provocada e indesejável. "Desde o primeiro dia, não dormimos, todos lutamos pelo nosso país, com o nosso exército", disse. Em seu discurso, o ucraniano citou ainda o escritor inglês William Shakespeare. "A questão para nós, agora, é ser ou não ser", disse. "Agora posso lhe dar uma resposta definitiva: é sim, ser". Ele pediu aos britânicos que aumentem a pressão das sanções contra a Rússia e a reconheçam como um Estado terrorista. Também fez um apelo por uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia."Por favor, certifiquem-se de que nossos céus estejam seguros."

Em entrevista ao Correio, Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla (Ucrânia), disse que interpretou as declarações de Zelensky à rede de TV ABC sob outra perspectiva. "Não reconheceremos a Crimeia como uma parte da Rússia e a independência das pseudorrepúblicas do leste. O que ele quis dizer é que podemos discutir condições sobre quais partes da região de Donbass ocupada podem ser devolvidas à Ucrânia. Em relação à Otan, Zelensky quer encontrar outros meios de garantias de segurança. Um apoio militar claro da comunidade internacional", explicou por telefone. 

Haran lembrou que, antes da guerra, o presidente foi criticado pelas forças políticas rivais. "Com a invasão, os partidos do governo e da oposição se uniram. Uma pesquisa divulgada em 1º de março mostra que Zelensky conta com 93% de apoio da população. Ele se tornou símbolo da resistência."

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Fuga do inferno

Enquanto Zelensky falava ao Parlamento, milhares de ucranianos aproveitavam o primeiro dia de abertura de um corredor humanitário para fugir do país. Até o fechamento desta edição, mais de 2 milhões de civis tinham atravessado as fronteiras para nações vizinhas, especialmente a Polônia. Eles deixaram suas casas, seus sonhos e suas vidas para trás. O Ministério da Defesa da Ucrânia acusou a Rússia de violar o cessar-fogo na estratégica cidade portuária de Mariupol, praticamente devastada pelos bombardeios. "O inimigo executou um ataque na direção do corredor humanitário", afirmou o comunicado. Os russos prometeram nova trégua humanitária para a manhã de hoje.

Diretor do Centro de Pesquisa para Segurança Regional da Universidade Estadual de Sumy, Mykola Nazarov contou ao Correio que a cidade está praticamete isolada do resto do país. Situada no nordeste da Ucrânia, a apenas 60km da fronteira com a Rússia, Sumy é uma das cinco cidades de onde se abriram corredores humanitários para a fuga de civis. "Estamos bloqueados, não há como recebermos suprimentos", afirmou o professor. Na noite de segunda-feira, um bombardeio russo matou 21 pessoas, incluindo duas crianças. Dos 270 mil moradores de Sumy, 3.500 partiram ontem, entre eles 1.700 estudantes estrangeiros. "As sirenes antiaéreas se tornaram diárias, e combates nas ruas são periódicos", disse Nazarov. 

Ainda segundo Nazarov, pela primeira vez, moradores de Sumy partiram em direção a Poltava (a 174km ao sul). "As colunas de refugiados estão na estrada. Os temas dos corredores humanitários são muito difíceis de serem resolvidos. Não existe certeza de que o lado russo comprirá com o acordo", comentou. Os cidadãos que insistem em ficar em Sumy se uniram ao exército para defesa territorial. "Criamos redes de voluntários para resolver assuntos importantes. Nós coordenamos a entrega de produtos vindos de vilarejos próximos, alguns são distribuídos sem custos. É possível solicitar fundos para receber comida e remédios", disse Nazarov. 

Em Kiev, o cineasta Leslyk Yakymchuk, 29 anos, e a namorada se mobilizam para ajudar as tropas. "Tentamos coletar suprimentos dentro e fora da Ucrânia para fazê-los chegar aos soldados. Se preciso, pegarei em armas para defender o meu país." 

Serguei Supinsky/AFP - Homem empurra carrinho com idosa, durante retirada de civis da cidade de Irpin. a noroeste de Kiev: mais de 2 milhões de refugiados
Louisa GOULIAMAKI / AFP - Ucraniana abraça a filha durante travessia da fronteira com a Polônia, a bordo de ônibus

Vozes da guerra

Mykola Nazarov, diretor do Centro de Pesquisa para Segurança Regional da Universidade Estadual de Sumy (nordeste)

"Muitos ucranianos estão unidos para defender o país. Quem tem formação militar o faz com armas em mãos. Mas vale lembrar que a defesa do Estado deve ser total. É muito importante que a retaguarda também trabalhe pela vitória. Um grande número de pessoas e organizações trabalham, em rede, por uma causa comum: fornecer aos combatentes comida, roupas e tudo o que precisarem. Os ucranianos repetidamente mostraram como podem trabalhar de forma harmoniosa e ajudar o vizinho. É difícil segurar as lágrimas quando você vê essa ajuda mútua, esse voluntarismo, o desejo de salvar e de ajudar o vizinho. Esse é o componente mais importante de nossa resiliência!"

Leslyk Yakymchuk, 29 anos, cineasta, morador de Kiev 

"A situação por aqui é muito estressante. Estamos prontos para uma nova escalada dos ataques à capital. De vez em quando escutamos as sirenes antiaéreas. Quando isso ocorre, temos que correr até os abrigos, pois significa que os russos estão lançando bombas sobre a cidade. Felizmente, nossos políticos estão nos protegendo. No momento, parece que os russos desistiram de tomar Kiev. Mas, quem sabe ao certo? Tudo é uma incógnita agora."

Dmytro Tishchenko, 28 anos, fundador da revista Cukr.city, em Sumy

"Na segunda-feira, as forças russas bombardearam 15 casas em minha cidade, matando 21 pessoas. Estamos cercados pelas tropas há mais de 10 dias e enfrentamos uma catástrofe humanitária. No sábado, os russos destruíram nossas centrais de eletricidade e de aquecimento. O corredor humanitário é uma boa possibilidade para quem não tem mais suprimentos básicos e para os doentes."

Xi Jinping recomenda "contenção máxima"

Em meio a fortes críticas sobre uma suposta aliança com a Rússia, a China expressou, ontem, profunda preocupação com os desdobramentos da guerra. Durante uma videconferência com o presidente francês, Emmanuel Macron, e com o chanceler alemão, Olaf Scholz, o líder chinês, Xi Jiping, pediu "contenção máxima" no conflito.

A China, que mantém boas relações com Moscou, se recusou até o momento a usar o termo invasão e limitou-se a "lamentar" o conflito no país, ao mesmo tempo que afirma "entender" as preocupações da Rússia com a segurança. Porém, durante a conversa, Xi declarou que estava "profundamente triste por acompanhar uma nova guerra no continente europeu", segundo a televisão pública chinesa CCTV.

"Queremos fazer um apelo por contenção máxima para evitar uma grande crise humanitária", acrescentou Xi, sem condenar a ofensiva iniciada em 24 de fevereiro pelo presidente russo, Vladimir Putin. O chinês disse a Macron e a Scholz que "aprecia os eforços de França e Alemanha para atuar como mediadores na Ucrânia".

Pequim também está disposto a desempenhar "um papel ativo", afirmou Xi, segundo a emissora. "Devemos apoiar juntos as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia", afirmou Xi, embora até o momento as rodadas de negociações em Belarus não tenham apresentado resultados.

Polônia

A Polônia se disse pronta a colocar "sem demora" aviões Mig-29 à disposição dos Estados Unidos, indicou o Ministério das Relações Exteriores polonês, abrindo caminho para a possível transferência dessas aeronaves à Ucrânia. Os EUA classificaram a proposta como "não sustentável".