Desde que Vladimir Putin autorizou as tropas russas a invadirem a Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, o governo brasileiro encontra-se em situação delicada. Uma semana antes do início do conflito armado, Jair Bolsonaro fez uma visita oficial à Rússia, durante a qual elogiou Putin e declarou ser solidário ao país, que já estava na iminência de invadir a Ucrânia.
Diante da escalada de tensões provocada pela Rússia, Jair Bolsonaro viu-se obrigado a aceitar as manifestações da chancelaria e de ministros próximos, que apontavam ser insustentável manter o Brasil sem posição quanto ao conflito. No dia 24 de fevereiro, que marcou o início da guerra, o presidente brasileiro convocou uma reunião de emergência para tratar diretamente do tema.
Participaram o ministro da Defesa, Braga Neto; o chanceler Carlos França, e os ministros-generais Luiz Eduardo Ramos, Secretário-Geral da Presidência, e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional. O assessor de Assuntos Estratégicos, Filipe Martins, também estava com o grupo.
Editoria de ilustração - -
Pelo menos três membros da reunião defenderam que o Brasil devia seguir o bloco dos Estados Unidos na reunião do Conselho de Segurança da ONU, que propunha uma resolução condenando a invasão russa em território ucraniano.
O documento recebeu votos suficientes para ser aprovado, inclusive do Brasil, mas a Rússia, que preside o Conselho e é membro permanente do grupo, exerceu o poder de veto. Posteriormente, o veto foi derrubado em assembleia geral do organismo, que ainda discute como socorrer os ucranianos por intermédio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Fontes do governo consultadas pelo Correio insistem que o mais importante era garantir a "posição do Brasil nos organismos internacionais pelo equilíbrio e pela imparcialidade". Por outro lado, França fez críticas às sanções impostas pela comunidade internacional, ao envio de armas e aos ataques cibernéticos sob o argumento de que isso prolonga a crise.
Tradição
Segundo os analistas, manter a imparcialidade faz parte da tradição diplomática brasileira. O que fugiria disso seria o teor crítico com relação às punições e sanções empreendidas pelos países europeus e pelos Estados Unidos. Na avaliação do general Paulo Chagas, a posição e as palavras de Bolsonaro desgastam a imagem do Brasil e colocam o país em uma condição favorável aos interesses russos.
"A posição de neutralidade é condizente com a tradição diplomática do Brasil, mas a viagem oficial até a Rússia e as palavras do presidente não são de neutralidade, mas, sim, de uma preferência aos interesses da Rússia", explica Chagas. "Não sei o que leva os generais que estão com o presidente a sugerir isso. Não tenho essa informação, sei pelo que li nos noticiários, mas também não vi ninguém desmentindo que o general Braga Netto e o general [Luiz Eduardo] Ramos estavam aconselhando o presidente nesse sentido. Pelos dados que tenho e pelo que eu aprendi e estudei no Exército, eu entendo que o Brasil deveria se colocar de acordo com nossos interesses. Não se justifica uma posição pró-Rússia''.
Para Thiago Nogueira, professor de direito internacional da Universidade São Judas, a posição do Brasil pode gerar desconfiança de parceiros do Ocidente. ''Preocupa a postura claudicante que o governo brasileiro adota neste conflito. Países do G7 e G20 fizeram manifestações duras de que as ações militares devem parar imediatamente, mas a do Brasil é apenas de cessar hostilidades, um pedido de paz de maneira geral, como se a Ucrânia tivesse participado ou tivesse alguma parcela de culpa do que está acontecendo com ela, o que não é o caso", avalia. "O Brasil defende a carta da ONU, a paz, mas não condenou veementemente a ação militar que a Rússia está colocando para a Ucrânia."
As análises vão na linha do posicionamento firmado pelo encarregado de negócios da Embaixada da Ucrânia no Brasil, Anatoliy Tkach, que cobrou posição mais forte do governo brasileiro sobre a invasão. "Imparcialidade não se aplica quando se sabe quem é o agressor", aponta.
Entrevista // David Magalhães
Mesmo sendo presidente da Rússia, berço da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e do comunismo, Vladimir Putin tornou-se aliado de primeira hora de Jair Bolsonaro, a ponto do mandatário brasileiro não repudiar de forma direta a invasão da Ucrânia.
Apesar do discurso anticomunista ser muito enfático nas falas de Bolsonaro, a Rússia de Putin — com exceção da ala olavista — era pouco lembrada por bolsonaristas. Às vésperas de decolar rumo ao Kremlin, Bolsonaro disse a um apoiador, em frente ao Palácio do Alvorada, que Putin era ''um conservador'' e ''gente da gente''. No começo do mesmo mês de fevereiro, o presidente foi a um estande de tiro e, ao acertar o centro do alvo, de cor vermelha, declarou que tinha ''muita vontade de acabar com o comunismo''.
Apesar de parecer uma dicotomia, a postura do presidente da República ao considerar Putin um ''amigo'' com ''valores em comum'' é explicada pelo coordenador do Observatório da Extrema Direita (OED), David Magalhães em entrevista ao Correio.
A Rússia ainda possui um viés socialista ou comunista da União Soviética?
O histórico da Rússia é de um país socialista, o próprio Vladimir Putin é ex-agente da KGB, mas hoje é um governo que se reaproximou da igreja ortodoxa, tal qual faziam os antigos czares, uma relação entre agenda ortodoxa e governo autocrático. A agenda de Putin está longe de uma agenda à esquerda, pelo contrário. Na Rússia, movimentos LGBTQIA , feministas e de direitos humanos são duramente reprimidos, com violência muitas vezes.
Por que ele é bem visto entre parte dos bolsonaristas e pelo próprio Bolsonaro?
O Putin tem uma agenda de costumes socialmente conservadores. É um governo despótico, ligado à igreja ortodoxa. Apesar de não ser como a igreja católica apostólica ou não ter espaço para o cristianismo protestante, como aqui no Brasil, é uma igreja cristã. Todos esses fatores fazem brilhar alguns setores do bolsonarismo. Alguns veem o governo autoritário do Putin com admiração, basta lembrar manifestações pró-ditadura militar, AI-5, etc. Quem se distancia disso é a ala olavista, onde há o receio de que exista uma frente China-Rússia com um novo projeto global, o que é uma fantasia, mas não há uma definição concreta dentro do movimento bolsonarista sobre o que é a Rússia.
Onde Putin e Bolsonaro se distanciam?
Apesar das semelhanças entre Bolsonaro e Putin contra minorias, ONGs e direitos humanos, quando a gente olha a política externa, ela está na contramão deste eixo atlantista. No campo da política externa, há uma certa confusão da posição ideológica atual da Rússia, pois eles apoiam regimes chavistas e apoiam todos regimes que são anti-hegemônicos na política externa. Isso causa ambiguidades, mas não vejo qualquer traço de esquerdismo, socialismo e muito menos comunismo no Putin e em seu governo.
Por exemplo…
Uma amostra disso é que, em 2017, quando se comemorou os 100 anos da Revolução Bolchevique Russa, Putin disse que não havia motivos para festejar a data de um dos principais símbolos da história russa. Ele não exalta planificação econômica, igualitarismo, propriedade comum dos meios de produção e ateísmo. Pelo contrário, ele vê a igreja ortodoxa como braço espiritual da política externa Russa. A única menção que tem é um tipo de enaltecimento ao período soviético e à guerra vencida contra os nazistas, eles chamam de grande guerra patriótica, então, tem um fator nacionalista muito forte. O único líder da URSS que é lembrado é Stalin, que também era mais nacionalista, diferente de Lenin e Trotski, que seguiam mais o comunismo.