Ao sair da maternidade, carregando em seus braços uma filha nascida de anos de luta e amor, Deise e Vinicius viram pela janela do carro os tanques e blindados russos ao deixar Karkhiv. Após meses de um cotidiano de ameaças e conflitos armados, as negociações haviam avançado e permitido um tratado temporário de paz entre os ucranianos e os separatistas pró-Rússia. Era 15 dezembro de 2019, e nada indicava que as tensões na região poderiam escalar para uma guerra com efeitos mundiais apenas três anos depois.
“Ficou essa visão romantizada na minha cabeça. Meu marido disse que aquilo era um sinal de que a Lua viveria em um mundo de paz”, contou ao Correio Deise Leobet, especialista em negócios internacionais e mãe de Lua. Ela e seu marido, Vinicius Carvalho Pinheiro, diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a América Latina e Caribe, passaram décadas lutando para realizar o sonho de ter filhos. Na Ucrânia, finalmente conseguiram: Lua é ucraniana, nascida em 12 de dezembro de 2019, após um processo de útero de substituição.
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A Ucrânia é uma das grandes referências no procedimento de útero de substituição. Conhecida popularmente como “barriga de aluguel”, a técnica de reprodução assistida permite que mulheres que não podem engravidar tenham filhos biológicos. É o caso de Deise, que muito cedo recebeu a notícia de que não poderia ser mãe.
“Eu recebi uma sentença quase de morte de um médico quando eu tinha 20 anos, a notícia que eu jamais ia ser mãe”, disse. “No dia que eu peguei minha filha nos braços, eu me dei conta de que uma grande sombra havia se dissipado. O peso do mundo havia saído de meus ombros”.
Mais de 20 anos depois, com vários procedimentos de adoção que deram errado e após quase terem conseguido iniciar o processo de útero de substituição na Índia — foram pegos de surpresa por uma mudança na legislação —, Deise e Vinicius foram para Kharkiv, cidade que está sendo pesadamente bombardeada pelo exército Russo nos últimos dias.
“Nós ainda temos bastante contato com a mulher que deu luz à Lua. Ela nos liga a cada 'mesversário' dela, já vão fazer 26”, conta Denise, que prefere não revelar sua identidade pela segurança e dificuldade no contato com a Ucrânia. Em uma troca de mensagens, a ucraniana revelou detalhes sobre o ataque russo, disse que a situação era assustadora e o ataque, violento. Ela disse ainda que busca refúgio na Alemanha.
“Estamos ajudando ela da forma que conseguimos, tanto financeiramente quanto por meio de contatos nos países vizinhos para tirar ela de lá”, afirmou Deise. “Antes de ter a Lua, eu já conhecia a Rússia e a Ucrânia, e tenho muitas pessoas queridas nesses dois países. Recentemente, eu recebi uma mensagem, na madrugada, de uma amiga ucraniana que estava praticamente se despedindo. Passei o resto da noite chorando, sem dormir. Ela não deu mais notícias desde então”, contou, emocionada.
Legado de solidariedade
Logo após o nascimento de Lua, a família se mudou para Nova York, em janeiro de 2020. Em fevereiro, já surgiam notícias sobre um vírus que poderia se tornar uma pandemia: o Sars-Cov-2. Em poucas semanas, eles estavam isolados em um apartamento localizado na zona hospitalar da cidade, com vista para o hospital Lenox Hill. “Sirenes tocavam 24 horas por dia. Na nossa varanda, nós víamos o hospital, com uma filha enorme de carros funerários para buscar os corpos. Depois de um tempo, os carros viraram caminhões frigoríficos”, detalhou Deise. “Nessa época realmente tivemos medo. Não era possível que depois de tanta luta para termos nossa filha, a história ia acabar ali”, continuou.
Os três voltaram para o Brasil no ano passado, e finalmente puderam apresentar Lua para o resto da família. Aparentemente tímida, a menina se solta ao brincar com os pais ou com os coleguinhas do bloco na quadra. Deise faz questão que a filha conheça a história de seu nascimento e como o povo ucraniano permitiu a realização do sonho de uma vida.
“Dessa situação toda eu quero deixar para ela a coragem dos ucranianos, as histórias de solidariedade e como eles realmente estão de mãos dadas. Ela já sabe de onde veio, de onde nasceu. É nossa ‘ucraniana do cerrado’'”, ressaltou Deise. “A vida dela está ligada a tantos fatos históricos. Quando ela nasceu, achávamos que ela poderia viver em um mundo de paz, mas não foi o que aconteceu. Pode parecer piegas, mas a história da Lua é uma história do amor de mãe, de duas mães, é a história do feminino da Ucrânia e da solidariedade de um povo. Sempre tivemos muito apoio dos ucranianos”, finalizou a mãe.
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