Às 4h do dia 24 de fevereiro, Rafael da Silva, 47 anos, sentiu o desespero de ouvir um som inimaginável no século 21. As sirenes de aviso de ataques antiaéreos dispararam, um indicativo de que a promessa russa que pairava no ar há um mês de invadir a Ucrânia havia se concretizado. O primeiro dia de guerra serviu para Rafael estocar comida, água e suprimentos no apartamento, em Lviv, cidade fronteiriça com a Polônia. O antigo lar, deixado para trás pelo brasileiro, recebe hoje pessoas fugitivas das cidades bombardeadas que buscam atravessar para o país vizinho.
“Como a cidade é perto da fronteira da Polônia, quem sai de lugares com maiores problemas busca essa cidade onde eu tinha apartamento. Tenho uma pessoa lá que está recebendo gente. Já receberam 12 pessoas no antigo apartamento, agora está chegando mais”, explicou Rafael.
Ele saiu de ônibus rumo a Krakóvia, cidade polonesa, no segundo dia de guerra. Porém, de acordo com o brasileiro, a viagem teve diversos perregues. “Foi super difícil conseguir a passagem, estava muito mais cara que o normal também. Atrasou e demoramos, no total, quase 20 horas para chegar ao destino. Ficamos parados na fronteira quase sete ou oito horas dentro do ônibus para esperar carimbar o nosso passaporte na saída da Ucrânia. No lado ucraniano, existe uma revisão muito forte de documentos. No lado polonês, eles olham mais bagagem. A fronteira está um caos”, detalhou.
No estourar da guerra, houve quem pensasse instantaneamente em fugir para um local seguro. Não foi o primeiro movimento de Rony de Moura, brasileiro que vive há três anos em Kiev, onde concluiu a faculdade de Medicina. “Desde que começou o conflito eu não pensei primeiramente em ir embora. Pensei que as coisas iam melhorar”, confessou.
Na manhã de quarta-feira (2/3), Moura conseguiu deixar a capital Kiev com ajuda da Embaixada do Brasil no país. “A pessoa me pegou na porta da minha casa às 7h20. Saímos de Kiev às 8h. Era um percurso de 400 km, nós demoramos 13 horas para percorrer, porque não vínhamos nas rotas principais. Estávamos fazendo zigue-zague nas estradas, para evitar as vias principais”, contou o médico, que agora se encontra no hotel em Leviev com outros três brasileiros. Amanhã, ele deve seguir para a Romênia.
O brasileiro admitiu que tinha dúvidas se receberia apoio do governo brasileiro. “Quem fez isso tudo foi a embaixada. Até então, eu estava descrente. Eles me surpreenderam com isso”, pontuou.
Iniciativas próprias
Sem conseguirem ficar inertes diante de tamanho conflito, a gerente de RH Ligia Lapa e a advogada Clara Magalhães Martins, ambas de 31 anos, construíram, de maneira orgânica, o Frente BrazUcra. O grupo de voluntários tem o objetivo de auxiliar no resgate de brasileiros que estão na Ucrânia em meio à guerra contra a Rússia. Até o momento, cerca de 27 pessoas foram resgatadas, sendo 23 cidadãos brasileiros.
“A gente acabou entendendo que estávamos dispostos, aqui na Europa, a disponibilizar esse suporte para quem precisasse na Ucrânia. Criamos um grupo no Telegram. A Clara e o Rodolfo resolveram que iam alugar um carro, ir para a Ucrânia e, a partir disso, a gente começou a se organizar para poder prestar esse suporte para eles, que estavam lá, e a fazer o monitoramento das áreas de risco”, contou Ligia, que mora na Bélgica. Ela presta suporte para Clara, que deixou a Alemanha, onde mora, para dar apoio aos brasileiros no local.
Outro voluntário que está em solo ucraniano e recebe este suporte é Rodolfo Caires. O cientista de 32 anos, residente de Dublin, na Irlanda, foi até a Ucrânia para prestar apoio. “Tive a ideia de súbito quando vi as imagens chegando do conflito na sexta-feira (25) de manhã. Eu pensei: ‘Eu tenho que ir o mais rápido possível. O pessoal está precisando de ajuda e não está tendo informações’”, contou o brasileiro, que há pouco mais de três semanas esteve na Ucrânia como turista.
Rodolfo relatou que o medo toma conta das estações de metrô, que servem como bunkers (abrigos) para os cidadãos. “As pessoas estão muito assustadas, porque quando você chega na estação de trem, em Lviv, é um pandemônio, é tudo caótico. Não se tem informação, está lotado de gente, as filas para tudo estão enormes, o caixa para sacar dinheiro não tem mais dinheiro. Tem muita gente que não fala a língua, perdido, então a gente serve como ponto de apoio para essas pessoas que chegam desnorteadas”, detalhou.
Apesar de já terem ajudado muitas pessoas, os voluntários da Frente BrazUcra correm contra o tempo para tirar todo mundo da Ucrânia o mais rápido possível. “Há preocupação de que não dê tempo porque os trens ainda estão passando e, no momento, já não dá para fazer a maioria dos trajetos de carro”, comentou Rodolfo.
Fraudes
Mesmo com intenção nobre, contudo, a Frente BrazUcra tem sofrido com tentativas de fraudes. Há dois dias, seguidores começaram a avisar Ligia sobre perfis falsos que estariam desviando as doações direcionadas à iniciativa. “Descobrimos que estavam criando um perfil fake do nosso grupo quando pessoas viram outros perfis, que não eram o que estávamos fazendo as lives [diárias]. Verificamos e vimos que realmente tinha gente usando nossos nomes, fotos e nossa causa para ganho próprio”, contou a brasileira.
Após as denúncias, o perfil oficial da ONG compartilhou uma publicação sobre as fraudes, denunciou à polícia e buscou assessoria jurídica para lidar com o tema. “Fomos orientados a não denunciar mais ao Instagram, para deixar a evidência lá. Estamos tomando atitudes legais agora”, declarou a voluntária.
A ONG tem um único perfil no Instagram, o @frente_brazucra. Segundo Lígia, a iniciativa não pede Pix (sistema de pagamentos instântaneo), a doação é recebida exclusivamente por meio de plataformas de vaquinhas públicas, transparentes e auditadas no final.
(*Colaborou Bernardo Lima)