A família não compareceu ao enterro de Dmytro Kotenko em Lviv, na Ucrânia.
Seus pais não ouviram os tiros disparados em sua homenagem. Eles não ouviram o som da fita amarrada à cruz de madeira no seu túmulo sendo movida pelo vento. Eles não viram a terra sendo depositada sobre seu caixão, nem depositaram flores sobre ele quando ele foi completamente coberto pela terra.
Os pais de Kotenko muito provavelmente nem sabiam que seu filho estava sendo enterrado naquele dia no cemitério Lychakiv, em Lviv. Eles estavam a quase mil quilômetros de distância, com os dois filhos menores, perto da cidade de Sumy, no leste do país, sob fortes bombardeios das forças russas. A cidade foi isolada do mundo exterior.
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Os pais de Kotenko sabiam que seu filho estava morto. Ele morreu em 26 de fevereiro — o terceiro dia da invasão russa — perto da cidade de Kherson, no sul da Ucrânia. Ele tinha 21 anos de idade e aquela havia sido sua primeira operação militar.
Dois dias depois da sua morte, os pais de Kotenko receberam uma ligação do seu amigo de infância, o soldado de artilharia Vadym Yarovenko, que deu a notícia.
Yarovenko havia passado a noite criando coragem para fazer a ligação - uma noite longa e cansativa no seu beliche do exército em Lviv, quando ele era o único a saber que Kotenko estava morto. Eles se conheceram com apenas 15 anos de idade, usando uniformes novos e com o cabelo recém-cortado para o primeiro dia na escola militar. A amizade começou quando eles souberam que eram de cidades vizinhas e poderia ter durado décadas a fio.
O pai de Kotenko era caminhoneiro e sua mãe trabalhava em uma fazenda da região. "Entrar no exército significava sair para o mundo", conta Yarovenko. "Acho que essa foi uma das razões para Dmytro ter se alistado."
Os Kotenkos eram uma família pobre formada pelo pai, a mãe e três filhos. Eles tinham uma casa simples em uma pequena cidade no leste da Ucrânia, na fronteira com a Rússia. São exatamente o tipo de pessoas que o presidente russo Vladimir Putin afirma estar resgatando do jugo da opressão ucraniana.
A anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e a guerra intensa que se seguiu em Donbas, no leste da Ucrânia, foi outra razão para o seu alistamento, segundo Yarovenko. "Sabíamos que algo como isso poderia acontecer e teríamos que sair para defender nossa terra", ele conta.
Quando as pessoas da cidade perguntavam por que eles queriam entrar para o exército em tempos de guerra, Kotenko respondia: "se eu não for, quem vai?"
O pai de Yarovenko também era motorista de caminhão e, na escola militar em Sumy, os rapazes se uniram por causa de seu amor por carros. Yarovenko é filho único e encontrou uma espécie de irmão em Kotenko.
"Nós não gostávamos da diversão na cidade, bares etc.", relembra Yarovenko. "Nós adorávamos passar o tempo na natureza - pescando, caçando, fazendo piquenique. Nós adorávamos ir para o rio com os amigos."
Eles trabalharam juntos em um carro antigo - um carro russo da marca Zhyguli, vermelho - que Kotenko estava consertando no terreno da família. Eles consertavam motocicletas e nelas andavam pelas estradas rurais perto de casa. Um acabou conhecendo a família do outro.
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"Os pais de Dmytro o amavam e ele os amava também", conta Yarovenko, enxugando as lágrimas do rosto. "Dmytro sempre os ajudava com os reparos, ele era bom nisso. Mesmo na escola ou na academia, ele sempre ajudava. Ele era muito bom com os pais. Nunca os ouvi brigando."
Yarovenko queria entrar em uma unidade da artilharia, mas o sonho de Kotenko era ser paraquedista. Depois de dois anos na academia, eles se separaram. Yarovenko foi para a cidade de Lviv, no oeste do país, para treinar tiro, enquanto Kotenko foi para Odessa, no sul, para treinar paraquedismo.
"Nós trocávamos mensagens todos os dias", relembra Yarovenko. "Falávamos sobre tudo. Coisas comuns - como vai você? o que está acontecendo por aí? Éramos amigos próximos, nós apenas conversávamos."
Entre julho e outubro de 2021, eles se encontraram quando Kotenko foi transferido para Lviv. Eles se encontravam nos fins de semana e treinavam juntos. Foi uma época feliz.
Em 31 de dezembro, suas famílias se reuniram para celebrar o ano novo e, cerca de um mês depois, Kotenko visitou Yarovenko em Lviv antes de sair para o sul do país em uma operação militar.
Eles ficaram até tarde conversando. Ao longo das fronteiras da Ucrânia, as forças russas estavam reunidas, aguardando a ordem de invasão. Mas, em Lviv, a vida era normal e, naquela noite, a guerra parecia algo distante.
Na manhã seguinte, Kotenko e Yarovenko se despediram e Kotenko foi para o sul. Eles continuaram trocando mensagens todos os dias. Em 26 de fevereiro, Kotenko parou de responder e Yarovenko temeu pelo pior. Ele acabou telefonando para o comandante da unidade de Kotenko, que contou que seu amigo havia sido morto por um disparo.
"Ainda não tenho os detalhes", relata Yarovenko. "Houve um bombardeio, houve uma explosão, Dmytro morreu."
Quando ele ligou para os pais de Kotenko, ainda havia conexão telefônica e ele contou rapidamente que seu filho havia morrido.
Mas, quando Yarovenko tentou ligar mais tarde para comunicar os pais sobre o enterro, o bombardeio aéreo de Sumy estava mais forte e ele não conseguiu conexão. Ele insistiu, mas a linha não funcionava. Por isso, o corpo de Kotenko foi trazido para Lviv e ali foi enterrado sem eles, já que aquela cidade não estava sofrendo bombardeios.
Yarovenko viajou sozinho da sua base para a Igreja de São Pedro e São Paulo em Lviv e permaneceu sozinho em um lado da nave, sob seu teto abobadado pintado com santos, enquanto a fumaça do incenso sendo queimado flutuava sobre os padres e os fiéis.
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Ao lado de onde ele estava, havia quadros montados com fotografias dos mortos pela guerra na Ucrânia. As primeiras fotos foram colocadas pelos capelães em 2014, em homenagem aos soldados mortos que eram membros da igreja. Mas pais enlutados de Lviv e de locais próximos viram as imagens e quiseram que seus filhos e filhas também fossem colocados ali. E foi assim que, aos poucos, a coleção de retratos foi crescendo.
"Eles nos trazem fotografias porque sabem que rezamos todos os dias pelos que morreram na guerra", afirma o padre Vsevolod, um dos capelães. "Somos parte da missão desta cidade de enterrar homens e mulheres do exército com honras militares, para que seus atos de bravura nunca sejam esquecidos."
Antes da invasão, a igreja realizava funerais para um ou dois soldados por mês, segundo o padre Vsevolod. Agora, são enterrados dois ou três homens por dia.
Os mortos recentes ainda não têm suas fotografias no mural de retratos. Kotenko não estava lá. Mas as fotografias serão colocadas, segundo o padre Vsevolod - e, se alguma família não puder ser comunicada e não souber que seu filho foi enterrado em Lviv, a igreja colocará sua foto para eles.
No dia do funeral de Kotenko, havia três caixões na igreja. Um dos homens era de uma pequena cidade perto de Lviv e a igreja estava cheia com sua família e amigos. Em seguida, eles o levaram para casa. Os outros dois caixões seguiram silenciosamente para o cemitério Lychakiv, com um pequeno grupo de soldados de uma unidade local, que ajudou a homenagear os mortos.
Kotenko foi enterrado ao lado de Kyrylo Moroz, de 25 anos, um paraquedista da sua unidade que também não pôde ser levado para casa. Eles foram colocados em um canto no fundo do cemitério, entre os mortos da Primeira e da Segunda Guerra Mundial e da guerra contra as forças apoiadas pela Rússia em Donbas.
Kotenko e Moroz foram o quarto e o quinto mortos nesta invasão a serem enterrados no cemitério Lychakiv. Seus túmulos eram muito simples, exceto por um buquê de rosas e um ramo de áster deixados pela igreja e marcados com a designação da sua unidade. Os três outros túmulos, de soldados de Lviv, foram decorados com flores e lanternas.
No dia seguinte, os coveiros de Lychakiv enterraram mais dois homens. No outro dia, mais três. As cruzes de madeira com seus nomes serão posteriormente substituídas por lápides para marcar sua memória para sempre.
"Graças a Deus, ainda não temos combates aqui em Lviv", disse o jardineiro do cemitério, "para podermos enterrar os soldados que estão defendendo nossa terra".
Yarovenko ainda está tentando falar com os pais de Kotenko, mas a linha telefônica segue cortada. Provavelmente, eles ainda estão isolados em Sumy. A invasão primeiro tirou seu filho e, depois, uma das poucas coisas que poderiam ter reduzido seu pesar - o direito de estar ao seu lado quando ele foi enterrado.
Enquanto o caixão de Kotenko era abaixado, Yarovenko ficou ao lado, atrás da guarda de honra que disparou os tiros. Foi a experiência mais triste da sua vida.
"Assisti ao meu amigo ser enterrado longe de casa", afirma ele. Depois, ele ficou em silêncio, olhando para o túmulo. Foi o último enlutado a permanecer ali, sozinho com os coveiros enquanto eles limpavam suas ferramentas.
"Nunca tivemos a chance de nos encontrar no front", segundo ele. Tudo o que restou foi a esperança de falar com os pais de Kotenko em breve e a memória do filho deles, que Yarovenko carregará consigo enquanto aguarda sua vez de lutar e levar a memória de Kotenko para a linha de combate.
* Com reportagem adicional de Svitlana Libet.
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