Quando olharem para o dia 24 de fevereiro de 2022, os historiadores do futuro deverão dizer que ali teve início não só a invasão do território ucraniano por tropas da Rússia, mas a Terceira Guerra Mundial. A provocativa interpretação sobre o conflito armado que eclodiu na Europa nas últimas semanas é feita pelo cientista político da Universidade de Chicago Paul Poast, estudioso de como o poderio financeiro é central em esforços de guerra.
Poast argumenta que a participação ativa na guerra vai bem além do envio de tropas a um campo de batalha. Para ele, armar ou financiar um dos lados de um conflito é também participar ativamente dele. E por isso, tanto os Estados Unidos quanto a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) - que nas últimas semanas não só enviaram bilhões de dólares em ajuda aos ucranianos como aplicaram as maiores sanções econômicas da história à Rússia de Vladimir Putin - já poderiam ser considerados partícipes da guerra atual.
Assim, na prática, as maiores potências econômicas mundiais e bélicas (Rússia, Estados Unidos e Europa Ocidental), já estariam em confronto direto, e já viveríamos o princípio da Terceira Guerra Mundial.
Há precedentes históricos para apoiar a interpretação de Poast. O principal deles, segundo o cientista político, seria o próprio ataque dos japoneses a Pearl Harbor, ato que dragou os americanos para os campos de batalha da Segunda Guerra Mundial.
De acordo com o pesquisador, o ataque do Japão ao território americano, em dezembro de 1941, aconteceu porque os japoneses se viram incapazes de vencer a guerra que lutavam na China e atribuíam seu insucesso na Ásia às sanções impostas pelos americanos ao petróleo japonês e ao auxílio financeiro e armamentício que o governo dos EUA vinha oferecendo à China.
Por esse mesmo raciocínio, Poast acredita que é apenas uma questão de tempo - e de capacidade de organização e força militar - para que a Rússia ataque a Polônia, por onde hoje escoam a maior parte dos comboios de ajuda da Otan e dos EUA para a Ucrânia. Isso, no entanto, acarretaria em uma importante escalada da guerra, já que a Polônia é membro da Otan, o que implicaria que os demais países da aliança viriam a seu socorro nos campos de batalha.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Poast à BBC News Brasil, editada por clareza e concisão.
BBC News Brasil - Já estamos vivendo uma guerra mundial sem que ainda tenhamos compreendido completamente isso?
Paul Poast - Temos ouvido do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que nós já estamos na Terceira Guerra Mundial, e outros líderes e pensadores têm dito coisas semelhantes.
A minha resposta é que depende de como se define guerra. Algumas pessoas usam a expressão Terceira Guerra Mundial para se referir a um conflito em que as armas nucleares estão sendo usadas e, portanto, seria realmente uma guerra muito curta porque seria a aniquilação nuclear. Outros dirão que uma guerra mundial tem que acontecer em vários locais ao redor do mundo ao mesmo tempo. Ou seja, não pode ser apenas como na guerra atual, apenas na Ucrânia, mas teria que incluir dois ou três continentes. Mas, na minha opinião, você não precisa necessariamente ir tão longe.
A chave para definir se algo é uma guerra mundial é realmente pensar sobre até que ponto diferentes países estão participando desse conflito. E isso está muito relacionado a outro conceito que muitos formuladores de políticas e estudiosos usam, que é a noção de uma guerra entre grandes potências, algo que muitos defendem que não acontece desde a Segunda Guerra Mundial. Então, minha resposta é que acho que podemos estar nos estágios iniciais do que os historiadores podem dizer mais tarde ser o início de uma guerra mundial, mesmo que armas nucleares nunca sejam usadas.
BBC News Brasil - E por que pensa isso?
Poast - A razão pela qual digo isso é porque, em primeiro lugar, você já tem uma grande potência envolvida diretamente, a Rússia. Em segundo lugar, embora outras grandes potências, como os Estados Unidos, não lutem na guerra diretamente, estamos muito perto disso. Os Estados Unidos estão abertamente fornecendo todos os tipos de armas à Ucrânia para combater a Rússia. E o fato de não fazerem em segredo, como no Afeganistão, quando a União Soviética invadiu o Afeganistão em 1989, é algo que realmente diferencia a guerra atual das chamadas guerras por procuração mais tradicionais, quando as potências apoiam um dos lados de forma velada, sem divulgar isso abertamente.
O Iêmen é um ótimo exemplo de uma guerra por procuração entre, digamos, a Arábia Saudita e o Irã, que vivem em uma espécie de guerra fria há décadas, na qual os dois países têm tentado evitar conflitos militares diretos entre si, mas têm investido em muitos conflitos militares indiretos no Iêmen.
Mas no conflito da Ucrânia, os lados são muito claros. De um lado, temos a Rússia, com alguma ajuda da Bielorrússia e tentando ajuda de outros países como a China. De outro lado, a Ucrânia com a Otan, os Estados Unidos e vários outros países do chamado Ocidente que os apoiam. E então, nesse sentido, as linhas de batalha, os lados são muito claros. O campo de batalha é muito claro. E também, novamente, o apoio na participação dos lados é muito claro. Então, nesse sentido, ele tem muitas características das coisas que você procuraria ao tentar dizer que algo é uma guerra entre grandes potências e, dependendo de quantas grandes potências estão envolvidas, você pode dizer que é realmente uma guerra mundial.
A única coisa que atualmente levaria alguém a dizer que não estamos em uma guerra mundial é que ainda não temos aquele confronto militar direto entre, digamos, as forças da Otan ou os Estados Unidos contra a Rússia. Mas se você olhar para comentários que Zelensky e outros fizeram, há um tom de que isso inevitavelmente deverá acontecer e, quando os historiadores olharem para esse período, dirão que em fevereiro 2022, quando a guerra começou, os lados já recebiam assistências de outros países e, eventualmente, isso alimentou o confronto militar direto. Mas essa é a única coisa que ainda não vimos. É uma grande coisa, claro, mas todo o restante dos fatores já indica para uma guerra mundial.
BBC News Brasil - O governo americano tem tentando traçar limites para a participação dos EUA na guerra. Biden já disse que não enviará combatentes americanos para lutar contra os russos em território ucraniano, mas não parece ver como participação de guerra o envio de armas e recursos financeiros. No entanto, a participação dos americanos nas duas guerras mundiais começou exatamente pelo auxílio econômico e armamentício que os americanos enviaram aos seus aliados. Então, como explicar essa linha de não participação que parece bastante artificial?
Poast - Acho que artificial é a palavra certa aqui. Uma grande área da minha pesquisa é o que chamo de economia política da guerra ou economia da guerra, então levo muito a sério a ideia de fornecer fundos, suprimentos, recursos e sobre como isso é tão vital para a guerra. Para mim, se você é o financiador/ fornecedor essencial, você é um contribuinte-chave para o esforço de guerra. E por isso é difícil dizer que você não é um participante dessa guerra. E por isso essa palavra artificial é muito importante, porque se olharmos para a participação dos EUA na Segunda Guerra Mundial, em particular, os americanos foram fundamentais para suprir os aliados por muitos anos antes de diretamente se envolverem nos conflitos.
Entre 1940 e 1941, embora os EUA não enviem tropas oficialmente para a guerra até 1942, eles já estão fornecendo as armas e, do ponto de vista da Alemanha, do ponto de vista de Hitler, já estão envolvidos no conflito e já são vistos como uma grande ameaça. E, portanto, da perspectiva do inimigo, não importa muito se você declarou guerra ou se se reconhece como parte da guerra, se ao financiar ou armar um dos lados você se torna o principal motivo pelo qual o inimigo está perdendo essa guerra ou está tendo mais dificuldade para vencê-la.
É possível ver que o Putin opera com essa lógica de entender a ajuda para a Ucrânia vinda do Ocidente, da Otan, dos Estados Unidos, como parte do conflito. Ele inclusive fez declarações sobre como essas sanções já são uma guerra econômica. Da perspectiva de Putin, ele já está em guerra com o Ocidente, com os Estados Unidos. Para ele, não importa que ainda não tenham sido usadas tropas americanas. Claro que é possível dizer que importa, já que a presença do exército americano seria um ponto-chave de escalada no conflito. Mas se Putin continuar tendo seu progresso militar frustrado na Ucrânia, ele dirá que a causa disso é a assistência que está sendo fornecida pelos Estados Unidos, pela Otan. E então, de sua perspectiva, não é uma luta entre a Rússia e a Ucrânia, ele se vê lutando contra o Ocidente na Ucrânia. Por isso que eu acho que artificial é uma boa palavra, porque sim, Biden pode dizer que ainda não está em guerra, mas Putin vê a situação de forma diferente.
BBC News Brasil - E, de acordo com seu raciocínio, Putin não está errado em pensar assim.
Poast - Sim. Há quem questione esse raciocínio dizendo: bem, Putin ainda não atacou um país da Otan, se ele realmente acha que estava em guerra com a Otan, ele já não teria atacado a Polónia? E a resposta pode ser, bem, o tempo dirá. Pode ser que nas próximas semanas ele ataque a Polônia. E pode ser que ele não o tenha feito ainda porque não tem a capacidade de abrir uma nova frente militar por conta das dificuldades grandes na Ucrânia. Ele pode, na verdade, ser alguém racional o suficiente para dizer 'não quero disparar uma arma nuclear porque ainda não estou em uma situação desesperadora o suficiente para fazer isso'.
Mas acredito que se ele tivesse condições militares um pouco melhores, ele já teria expandido essa guerra. No início da guerra, eu falei sobre como, dependendo de quão fácil fosse conquistar a Ucrânia - o que obviamente se mostrou bastante difícil - Putin procuraria expandir o conflito para os países vizinhos, então acho que a única razão pela qual ele ainda não atacou outros pontos da Europa ocidental é que ele simplesmente não conseguiu vencer ainda na Ucrânia, e por isso não tem como redirecionar forças.
BBC News Brasil - Mas isso seria um cenário em que as intenções de Putin vão muito além da Ucrânia. Na sua avaliação, o que Putin deseja com sua ofensiva militar?
Poast - Acho que seu objetivo final era recriar pelo menos uma parte do Império da União Soviética, possivelmente até mesmo do Império Russo. E percebe-se isso em sua retórica antes da invasão. E se tivesse sido fácil, creio que ele teria buscado a anexação completa da Ucrânia para tornar a Ucrânia não apenas um estado independente subserviente à Rússia, mas realmente torná-la parte da Rússia. E se ele tivesse conseguido isso, acho que teria mirado em outras ex-repúblicas soviéticas que não estão totalmente alinhadas com a Rússia, como a Moldávia ou a própria Geórgia. E se isso se mostrasse fácil o suficiente, ele se voltaria para os estados bálticos, embora, é claro, os estados bálticos sejam um cenário totalmente diferente porque estão na Otan.
Agora, na minha opinião, ele teve que ajustar seu objetivo. Acredito que ele ainda espera conseguir uma mudança de regime na Ucrânia. O cenário, no entanto, é que ele pode acabar em um atoleiro na Ucrânia, de onde não quer recuar, mas onde também não consegue avançar em seu objetivo final.
BBC News Brasil - Antes da invasão, Biden deixou claro que forças da Otan ou dos EUA não lutariam diretamente na Ucrânia, mas não anunciou qualquer restrição em termos de apoio financeiro ou armamentício a Zelensky. Recentemente, no entanto, os americanos e seus aliados excluíram a possibilidade de envio de aviões de guerra para a Ucrânia. Por que barrar o envio de aviões se já estão enviando drones antiaéreos?
Poast - Enviar aviões seria uma receita pronta para escalar o conflito. Isso porque enviar os aviões por terra, para uma zona de guerra, seria um enorme desafio logístico. Então os jatos teriam que decolar de algum território da Otan, conduzir operações militares e depois voltar para a base. E por isso mesmo, inicialmente, a ideia era de que os aviões partissem de uma base na Alemanha e não na Polônia, já que a partir da base aérea polonesa, perto da fronteira com a Ucrânia, os aviões e a própria base aérea seriam alvos fáceis para os russos. Mas o problema não é só esse. Mesmo que os pilotos fossem ucranianos, seriam aviões poloneses, partindo de uma base dos Estados Unidos na Alemanha para atacar em território ucraniano e depois retornar à base. Os russos evidentemente veriam nisso uma escalada na participação de EUA e aliados da Otan.
BBC News Brasil - Certo, mas os Estados Unidos e seus aliados estão continuamente enviando armamentos para os ucranianos e essas armas passam normalmente pela fronteira da Polônia com a Ucrânia. Então qual é a diferença entre enviar aviões ou outras armas a partir do território polonês?
Poast - Sim, e por isso uma das maiores preocupações atuais está na possibilidade de a Rússia mirar esses comboios de recursos e suprimentos, que estão cruzando a fronteira entre a Polônia e a Ucrânia. E por isso mesmo eu acho que se há algum membro da Otan com maior probabilidade de ser atacado pelos russos hoje é a Polônia.
É verdade que Putin tem interesses territoriais nos Balcãs e que antes eles seriam um alvo mais óbvio, mas a Polônia é hoje quem oferece assistência à Ucrânia mais diretamente e é fácil para os russos dizerem que a Polônia é o canal de armas para os ucranianos, além de ser para onde boa parte dos refugiados está seguindo. Então, esse poderia ser precisamente o argumento da Rússia para atacar um país da Otan acusando-o de ter agredido primeiro, acusando de ser blefe esse argumento dos líderes políticos dos Estados Unidos de que exista uma distinção entre fornecer armas e operá-las diretamente em uma guerra.
BBC News Brasil - Existe algum precedente histórico de uma situação como essa?
Poast - O melhor exemplo disso, historicamente, são os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.
Em 1937, o Japão se envolveu em uma guerra na China e então os Estados Unidos acabaram impondo um embargo de petróleo no Japão por causa disso. Mais tarde, a China também foi beneficiada com suprimentos no Lend-lease (um programa do presidente americano Franklin Roosevelt para financiar, por meio de empréstimo, armas e recursos para países aliados). E, no limite, isso levou o Japão a perceber que não teria condição de vencer a guerra na China dado o apoio americano e à decisão dos japoneses de atacar Pearl Harbor.
Basicamente, o ataque do Japão a Pearl Harbor tinha o objetivo de interromper o auxílio de guerra à China, mesmo que os americanos não tivessem qualquer tropa em território chinês. Esse é um caso clássico em que os EUA tentaram não se envolver efetivamente no conflito, mas foram percebidos como uma ameaça tão significativa que acabaram sendo atacados e levados ao conflito diretamente.
BBC News Brasil - A China é central no destino desse conflito e tem mantido uma postura ambígua até agora. Na semana passada, o líder chinês Xi Jinping e o presidente americano Joe Biden conversaram por quase duas horas sobre a situação. Os americanos têm acusado os chineses de cogitar financiar os russos na Ucrânia, o que Pequim nega. Depois da conversa, Xi afirmou que os países não devem se confrontar em campos de batalha. Como vê a situação chinesa?
Poast - A posição da China durante toda esta crise tem sido de ambiguidade, eles não fizeram declarações fortes contra ou a favor da Rússia. O que parece sair dessa conversa entre os EUA e a China, de que devem evitar se confrontar diretamente na Ucrânia, pode ser lido de várias maneiras. Não significa que a China não apoiará a Rússia. Significa apenas que, como Biden, Xi não pretende enviar tropas chinesas diretamente para a Ucrânia. Os dois países não querem que uma potencial guerra por procuração entre ambos se torne uma guerra direta entre os EUA e a China. E vale lembrar que os dois países já estiveram em lados opostos em conflitos depois da Segunda Guerra Mundial - o Vietnã é o melhor exemplo disso.
Mas se não devemos esperar confronto direto entre os países, ainda está na mesa para a China fornecer algum tipo de assistência direta à Rússia. E a ameaça de sanções econômicas (pelos EUA) certamente não são o suficiente para barrar a China de fazer aquilo que ela acha ser de seu interesse estratégico primordial. As pessoas apontam as enormes trocas comerciais entre EUA e China para dizer que uma guerra entre os dois países é improvável pelo custo econômico que acarretaria a ambos e ao mundo. Mas em 2017, quando houve a crise dos mísseis da Coreia do Norte, a China aliviou a crise, mas deixou claro que se os EUA atacassem a Coreia do Norte, os chineses defenderiam o país, embora tenham deixado claro que ficariam neutros se um ataque americano fosse motivado por uma provocação norte-coreana. Naquele momento, eles foram capazes de aliviar a crise, mas deixaram claro que arriscariam um conflito com os americanos em nome de sua aliança estratégica com a Coreia do Norte.
E a assistência à Rússia segue a mesma lógica. Recentemente Putin e Xi assinaram esse acordo de amizade, se veem como parte dessa nova ordem internacional que querem liderar. E por isso essa é uma das maiores implicações desse conflito, que vai muito além das cenas horríveis de ataques a civis e destruição de um país. Se a China optar por uma aliança com a Rússia para tentar criar uma ordem internacional alternativa ao Ocidente, isso teria enormes implicações basicamente para o resto do século 21.
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