A invasão da Rússia na Ucrânia gerou uma situação inusitada no Brasil. De um lado, o presidente Jair Bolsonaro (PL) evita condenar as ações de Vladimir Putin e diz que a postura brasileira é de "equilíbrio". Por outro, a diplomacia do país vem votando contra Moscou em fóruns nas Nações Unidas.
Mas segundo Victor Jeifets, analista de Relações Internacionais e especialista em América Latina de São Petersburgo, a posição neutra adotada por Bolsonaro já foi suficiente para agradar o governo russo.
"Era importante para Moscou que o presidente Bolsonaro não tomasse um partido muito definitivo e não se posicionasse como aliado incondicional de Washington", afirmou o pesquisador à BBC News Brasil.
"Creio que isso já é suficiente para Moscou no momento, apenas ser capaz de demonstrar que existem visões distintas sobre a questão em diferentes países".
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Para Jeifets, o que mais importa para Vladimir Putin neste momento é o apoio que recebe dentro de seu próprio país. Segundo ele, Moscou não tem expectativas para o Brasil que vão muito além do que já foi feito até agora.
"Eu tendo a acreditar que a Rússia não estava esperando um apoio absoluto por parte do Brasil. Se analisarmos a posição tomada pelo país oito anos atrás, quando a Assembleia-Geral das Nações Unidas aprovou uma resolução que condenava a Rússia pela questão da Crimeia, o governo de Dilma Rousseff adotou uma posição negativa em relação a Moscou e se absteve na votação", diz.
A invasão à Rússia pela Ucrânia aconteceu poucos dias depois de Jair Bolsonaro se encontrar com Vladimir Putin em Moscou. Naquele momento, países da Europa e os Estados Unidos já previam uma ação militar comandada pelo Kremlin e condenavam a posição russa veementemente.
O discurso adotado pelo presidente brasileiro no encontro, porém, destoou daquele repetido por Joe Biden, Emmanuel Macron e outros líderes. Em uma de suas declarações, sem mencionar a crise na fronteira ucraniana, Bolsonaro disse que era solidário à Rússia.
Após a invasão, o líder brasileiro manteve uma posição neutra e evitou criticar Putin. No dia que a operação começou, Bolsonaro chegou a desautorizar o vice-presidente Hamilton Mourão, que tinha comparado a ação militar russa com o nazismo, em uma live. Em outra declaração, ele disse que sua posição era de "equilíbrio".
A diplomacia brasileira, porém, votou a favor de uma resolução que condenava as ações russas no Conselho de Segurança da ONU. O país também manteve a posição na Assembleia-Geral das Nações Unidas e votou a favor de outra resolução semelhante.
"Na minha visão, há muitos grupos de influência diferentes no Brasil e as posições diferem muito também", afirma Victor Jeifets. "Nem o Executivo brasileiro tem o mesmo ponto de vista, pois o vice-presidente tomou um partido bastante diferente do presidente em relação à crise, assim como outros políticos brasileiros influentes."
Movimentação na América Latina
Ao todo, 141 países votaram contra a Rússia durante a decisão sobre a resolução para condenar a ação militar na Ucrânia na Assembleia-Geral das Nações Unidas. Entre os países que se abstiveram na votação estão alguns aliados recentes de Moscou, como a China, e outros de longa data, como os latino-americanos Bolívia, Cuba, Nicarágua e El Salvador - a Venezuela está impedida de votar por acumular dívidas com a ONU.
Para Victor Jeifets, o posicionamento diante da atual crise é demonstrativo de um rearranjo das visões políticas na América Latina.
"Para além de Nicarágua, Cuba, Bolívia e Venezuela, a maioria dos países da América Latina não apoiam as atitudes da Rússia na Ucrânia", diz. "E há uma diferença grande da votação de oito anos atrás sobre a Crimeia, quando muitas nações latino-americanas se posicionaram a favor da Rússia e não apenas se abstiveram".
Segundo o especialista, os governos desses países estão receosos em tomar partido no momento. "Eles não querem tomar uma posição definitiva em favor da Rússia agora porque não têm certeza absoluta de como os últimos acontecimentos se relacionam com a lei internacional. E a questão do direito internacional é importante para muitas nações latino-americanas", afirma.
Jeifets acredita que a mudança de posição recente cria um movimento de reordenação das visões sobre política externa na região, o que poderia também afetar as próximas eleições presidenciais nos países do continente.
"A esquerda pode perder certa porcentagem de votos por conta de sua associação com Moscou aos olhos dos eleitores, apesar de Lula e outros políticos de esquerda preferirem se distanciar da posição russa", diz.
O analista afirma ainda que o distanciamento dos governos latino-americanos do conflito na Ucrânia deve abrir mais espaço para a China no continente.
"Nos últimos anos observamos um envolvimento grande da Rússia, China e União Europeia na América Latina e uma diminuição da influência dos Estados Unidos", avalia. "Agora, muitas nações querem diversificar suas relações externas e não desejam se colocar entre os EUA e a Rússia, o que pode fazer com que optem por aumentar seus laços com os chineses".
'Guerra Fria 3.0'
A ação militar russa na Ucrânia foi iniciada em 24 de fevereiro e, segundo Jeifets, não há indícios de que o confronto deva acabar tão rápido.
"Acredito que este conflito vá se estender por muito tempo. Não me refiro ao estágio militar, porque não sou especialista na área e é difícil fazer uma estimativa de quantos dias ou semanas pode durar, mas sim aos aspectos econômicos, políticos e geopolíticos", diz o especialista russo.
"Na minha opinião, pode se tonar um conflito mais global entre a Rússia e parte dos países ocidentais. E nesse caso suponho que possa durar meses e anos".
Para Jeifets, se desenha uma conjuntura muito semelhante àquela observada há cerca de 60 anos, durante a Guerra Fria.
"Há alguns anos falava-se de uma Guerra Fria 2.0, um confronto geral entre a Rússia e os países ocidentais iniciado em 2008 com o conflito na Geórgia e Cáucaso Sul. Mas a partir de fevereiro deste ano a situação mudou e o conflito já pode ser qualificado como Guerra Fria 3.0", avalia.
"Ainda não temos um confronto armado entre a Rússia e a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], mas o nível de tensões está muito mais alto que poderíamos imaginar cinco anos atrás".
O especialista se diz esperançoso em relação a uma saída diplomática, mas vê uma resistência grande dos dois lados em ceder durante as negociações.
Entre outras coisas, Moscou exige garantias de que a Ucrânia se desmilitarize e se torne um Estado neutro. Isso porque os russos acusam a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) de avançar de forma ameaçadora no leste da Europa, expandindo sua influência por seus vizinhos.
O presidente Vladimir Putin também é determinado ao defender a ideia de que a península da Crimeia pertence à Rússia.
"A Rússia certamente não vai ceder em suas exigências, pelo menos não agora", avalia. "A Crimeia não é apenas uma questão de política externa para a Rússia, mas também de política interna, pois se tornou um dos fatores para o aumento da popularidade do presidente da Rússia".
Jeifets também não acredita que a Ucrânia vá abandonar suas condições, especialmente quando se trata do reconhecimento da independência das províncias de Donetsk e Luhansk pelo Kremlin. A Rússia invadiu e anexou a região da Crimeia, no leste do país, em 2014.
A movimentação desencadeou uma rebelião separatista nas regiões de Donetsk e Luhansk, onde os rebeldes apoiados por Moscou lutam desde então, em uma guerra que já custou 14.000 vidas.
Pouco antes do início da invasão à Ucrânia em fevereiro, Putin reconheceu a independência das províncias, contrariando o governo ucraniano.
"Ainda espero que haja espaço para uma solução diplomática, mas para isso ambas as partes devem receber alguma espécie de garantia. Os dois lados devem se sentir seguros, militar e politicamente, ou não cederão", diz o especialista russo.
"Eu espero que o conflito atual não desencadeie um confronto armado. Mas se alguém me perguntasse há 20 dias atrás se o que vemos hoje na Ucrânia seria uma realidade eu diria que era absolutamente impossível", opina Jeifets. "Tudo está mudando muito rápido."
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