Guerra no leste europeu

Guerra na Ucrânia segue sem sinal de trégua

Nova rodada de negociações entre enviados de Rússia e Ucrânia termina sem avanços. Moscou intensifica bombardeios, dispara mísseis contra Kiev e aperta o cerco à capital. Zelensky discursará amanhã ante o Congresso dos Estados Unidos

Rodrigo Craveiro
postado em 15/03/2022 06:00
Bombeiros retiram morador de prédio atingido em bombardeio em Obolon, distrito de Kiev: combates se aproximam da capital  -  (crédito: Serviços de Emergência do Estado da Ucrânia/AFP)
Bombeiros retiram morador de prédio atingido em bombardeio em Obolon, distrito de Kiev: combates se aproximam da capital - (crédito: Serviços de Emergência do Estado da Ucrânia/AFP)

Morador de Kiev, Yevhen Mahda, 47 anos, responde de pronto, ao ser questionado pelo Correio sobre as condições para o fim da guerra. "(Vladimir) Putin tem que morrer", afirma, ao citar o presidente da Rússia. Em 25 de fevereiro, um dia depois de as forças russas invadirem a Ucrânia, ele colocou a mulher, Olena, e as filhas — de 15 meses, de 6 e de 8 anos — dentro do carro e dirigiu por cerca de 500km, até a região oeste do país. Seis dias depois, retornou à capital. Yevhen não crê no sucesso das negociações diplomáticas para deter o conflito. "Putin quer destruir o meu país. Não vejo espaço para a diplomacia", desabafa. Ontem, representantes de Moscou e de Kiev encerraram mais um encontro sem avanço e prometeram continuar as conversas hoje.

"Uma pausa técnica foi dada nas negociações até amanhã (hoje, 15/3). Para trabalho adicional nos subgrupos de trabalho e esclarecimentos de definições. As negociações continuam", escreveu, no Twitter, Mykhailo Podoliak, enviado ucraniano. 

Em meio ao entrave diplomático, a Rússia aperta o cerco a Kiev e mantém os bombardeios a várias regiões da Ucrânia. Ontem pela manhã, um "disparo de artilharia" atingiu um prédio residencial em Obolon, a 7km do centro da capital. Pelo menos um civil morreu e 12 ficaram feridos. Lidia Tikhovska, 83 anos, observava a cratera aberta pelo míssil e imaginava os restos carbonizados do filho, de 58, surpreendido pelo ataque quando chegava à casa da mãe com comida e outros itens básicos. "Ele está estirado ao lado do carro, mas não me deixam passar", sussurrava a idosa, em entrevista à agência France-Presse. "Agora ficarei sozinha no meu apartamento. Para que ele me servirá? Desejo à Rússia a mesma dor que sinto agora."

Um segundo ataque deixou uma pessoa morta em outro bairro residencial. Mais a oeste, na cidade de Antopil, uma ofensiva russa contra uma torre de televisão deixou nove mortos e o mesmo número de feridos. Até o fechamento desta edição, mais de 2,8 milhões de refugiados tinham deixado a Ucrânia — 1,7 milhão buscaram abrigo na Polônia.

Na região de Donetsk (leste), controlada por separatistas russos, o Ministério da Defesa da Rússia acusou as forças da Ucrânia de matarem 20 civis em um disparo de míssil. Kiev atribui o ataque aos invasores. Nos arredores da capital, o britânico Benjamin Hall, correspondente da emissora Fox News, foi ferido e hospitalizado. No domingo, o jornalista norte-americano Bred Renaud, 50, foi morto a tiros em Irpin, e um colega ficou ferido.

Risco nuclear

O secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou Putin por elevar o nível de alerta das forças nucleares russas. O diplomata português classificou o desdobramento como "de arrepiar os ossos". "A perspectiva de uma guerra nuclear, antes impensável, agora está de volta ao reino das possibilidades. A segurança e a proteção das instalações nucleares também devem ser preservadas", defendeu. "É tempo de parar o horror desencadeado sobre o povo da Ucrânia e entrar no caminho da paz e da diplomacia." Guterres advertiu que "a Ucrânia está sendo dizimada aos olhos do mundo". 

Também morador de Kiev, o empresário Oleksandr Voloshyn, 27, admite ao Correio que muitos ucranianos estão preocupados com o fato de o Exército russo ter capturado usinas nucleares. "Depois do lançamento de bombas de fósforo branco por parte dos russos, na região de Luhansk (leste), os civis estão cada vez mais amedrontados sobre o risco de ataques químicos em nossas cidades", afirma.

Amanhã, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, fará um pronunciamento virtual histórico ao Congresso dos Estados Unidos a partir das  10h (hora de Brasília). "Esperamos ter o privilégio de dar as boas-vindas ao discurso do presidente Zelensky na Câmara de Representantes e no Senado e transmitir nosso apoio ao povo da Ucrânia enquanto defende corajosamente a democracia", afirmaram a presidente da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, e o líder democrata no Senado, Chuck Schumer, em carta conjunta aos congressistas.  

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Vozes de Kiev

 (crédito: Arquivo pessoal )
crédito: Arquivo pessoal

Les Yakymchuk, 29 anos, diretor de cinema

"Às vezes, escutamos sirenes. Às vezes, bombardeios. Todos os dias temos mísseis. Algumas vezes ouvimos o som de baterias antiaéreas. Não acredito em progresso na diplomacia. Eles (russos) exigem nossa rendição. Putin quer agarrar parte da Ucrânia. Os russos chegam a bombardear os refugiados. As pessoas que desejavam abandonar Kiev o fizeram duas semanas atrás. Estamos prontos para qualquer coisa."

Oleksandr Voloshyn, 27 anos, empresário

"Há um sentimento de ansiedade entre as pessoas, especialmente depois dos bombardeios de hoje (ontem). O barulho de explosões pode ser ouvido com frequência. Os ucranianos precisam fechar o céu, algo que os países da Otan ainda não fizeram. Por isso, os mísseis dos invasores estão matando civis, inclusive crianças."

Herman Makarenko, 60 anos, maestro da Orquestra Clássica de Kiev

"Bombas explodem perto da capital. Os russos têm atingido prédios residenciais. Tenho feito concertos pela paz em Kiev e em Odessa. Pedimos por uma zona de exclusão aérea. Queremos estendê-lo para outras cidades, inclusive Mariupol. Temo por minha família."

Yevhen Mahda, 47 anos, pós-doutor em ciência política

"Putin mostrou claramente que deseja arruinar a Ucrânia o tanto quanto possível. Mas esses planos são somente o produto de sua imaginação doentia. Nós venceremos. Negociações diplomáticas efetivas somente serão possíveis com o apoio de um mediador poderoso e com garantias internacionais."

  • Yevhen Mahda, pós-doutor em ciência política e morador de Kiev
    Yevhen Mahda, pós-doutor em ciência política e morador de Kiev Foto: Arquivo pessoal
  • Oleksandr Voloshyn, 27 anos, empresário de Kiev
    Oleksandr Voloshyn, 27 anos, empresário de Kiev Foto: Rostovikova.com
  • Les Yakimchuk, cineasta ucraniano, morador de Kiev
    Les Yakimchuk, cineasta ucraniano, morador de Kiev Foto: Elizabeth Tishchenko

Posição chinesa preocupa os Estados Unidos

 (crédito:  AFP)
crédito: AFP

Após um encontro de sete horas, em Roma, com Yang Jeichi, o mais alto diplomata do Partido Comunista Chinês, Jake Sullivan — conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca — advertiu Pequim sobre o apoio ao presidente da Rússia, Vladimir Putin. Ao classificar o diálogo como "intenso" e "muito franco", Sullivan disse ter alertado à China que nenhum país será capaz de se safar da tentativa de socorrer a Rússia, enquanto o Kremlin tenta resistir às sanções impostas pelos Estados Unidos e pelo Ocidente. 

"Os EUA estão profundamente preocupados com a posição da China de alinhamento com a Rússia" frente à guerra na Ucrânia, disse Sullivan. O governo norte-americano afirma ter dados de inteligência que apontariam o interesse dos chineses em fornecer a Moscou assistência financeira e militar. O enviado do presidente democrata Joe Biden alertou a China para "implicações e consequências em potencial", caso Pequim preste alguma ajuda ao presidente russo, Vladimir Putin, em sua invasão à Ucrânia. Antes da reunião em Roma, autoridades de Washington afirmaram que a Rússia chegou a pedir ajuda militar à China. Pequim classificou a declaração como "desinformação". 

Entre a assistência supostamente solicitada pela Rússia à China estão kits de alimentos não perecíveis pré-embalados, conhecidos nos EUA como "refeição pronta para comer" (ou MRE). Pequim também destacou os desafios logísticos básicos que analistas militares dizem ter estagnado o avanço das forças russas em território ucraniano. A China se recusou a condenar diretamente Moscou pela invasão à Ucrânia e culpou a "expansão ocidental" da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Na semana passada, Pequim insistiu que a amizade com a Rússia permanece "sólida", apesar da condenação internacional contra Moscou, e expressou sua intenção de se oferecer como mediador para acabar com a guerra.

Mídia

À medida que a guerra na Ucrânia se estende, a mídia oficial chinesa apresenta sua própria versão da invasão russa, baseada em grande parte na retórica de Putin. No dia em que Putin anunciou o ataque, a agência de notícias Xinhua repetiu a linguagem do Kremlin, falando de uma "operação militar especial" e afirmando que a Rússia "não tem intenção" de ocupar a Ucrânia. A mídia evita cuidadosamente o termo "guerra", preferindo palavras como "conflito" ou "luta".

"A China usa intencionalmente uma linguagem muito vaga", diz à AFP Justyna Szczudlik, especialista em China do Instituto Polonês de Assuntos Internacionais. Com isso, Pequim espera não se contrapor aos seus parceiros europeus, aponta. Nas redes sociais, palavras-chave pró-Putin aparecem e apelos à capitulação da Ucrânia circulam sem censura, enquanto mensagens pró-ucranianas são bloqueadas.

Alguns meios de comunicação também aceitam as teorias da conspiração russas ao pé da letra. "Não há fumaça sem fogo", comentou o Global Times sobre as alegações russas de supostos laboratórios biológicos dos EUA na Ucrânia. No entanto, o jornal nacionalista permaneceu em silêncio sobre a negação de Washington, chamando as acusações de "mentiras descaradas".

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