Guerra no leste europeu

Rússia impõe condições para silenciar armas e terminar a guerra

Moscou desiste da "desnazificação" da Ucrânia, cobra fim dos planos de incorporação à Otan e à União Europeia e exige a independência da Crimeia e de Donbass. Kremlin anuncia trégua temporária em ataques a cinco cidades para a retirada de civis

Rodrigo Craveiro
postado em 08/03/2022 06:00
 (crédito: Handout / UKRAINE EMERGENCY MINISTRY PRESS SERVICE / AFP)
(crédito: Handout / UKRAINE EMERGENCY MINISTRY PRESS SERVICE / AFP)

A guerra entrou, hoje, em seu 13º dia com a perspectiva da criação de corredores humanitários para permitir a passagem dos refugiados e com a imposição de exigências de Moscou para a paz. A Rússia anunciou que, a partir das 9h de hoje (4h em Brasília), adotaria uma trégua pontual em diferentes regiões ucranianas para possibilitar a retirada de moradores de Kiev e das cidades de Sumy, Kharkiv, Chernigov e Mariupol. Quase 4% da população da Ucrânia — ou 1,7 milhão de pessoas — fugiram da invasão russa.

Pouco depois do comunicado feito pelo Ministério da Defesa russo, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou as forças de Moscou de sabotarem a remoção dos civis. "Houve um acordo sobre os corredores humanitários. Funcionou? Em seu lugar houve tanques russos, Grads russos (lança-foguetes), minas russas", disse, em vídeo publicado na rede social Telegram. "Eles (russos) garantem que um pequeno corredor seja aberto para o território ocupado, para algumas dezenas de pessoas. Não tanto para a Rússia, mas para os propagandistas, diretamente para as câmeras de televisão."

Enquanto se desenrolava a terceira rodada de negociações diplomáticas, em Belarus, a Rússia aliviava levemente a lista de demandas e prometia pôr fim à "operação especial", caso a Ucrânia desista dos planos de incorporar-se à União Europeia e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Ortan) e reconheça Crimeia e Donbass (leste) como regiões independentes. A exigência de "desnazificação" do país foi abandonada. Os negociadores ucranianos reconheceram que, nos diálogos de ontem, obtiveram alguns resultados positivos sobre a logística dos corredores humanitários. No entanto, o Kremlin declarou que as "expectativas" não foram atendidas. Na próxima quinta-feira, os chanceleres Serguei Lavrov (Rússia) e Dmytro Kuleba (Ucrânia) se reunirão no sul da Turquia.

Uma polêmica em torno dos corredores humanitários elevou ainda mais o drama dos refugiados. As forças russas anunciaram a paralisação dos bombardeios em algumas regiões "com fins humanitários" e a abertura dos corredores para resgatar moradores de Kiev, Kharkiv, do porto de Mariupol e de Sumy. Como metade dos corredores seguia em direção à Rússia e a Belarus, a proposta foi rejeitada por Kiev.

O subsecretário-geral para Assuntos Humanitários da Organização das Nações Unidas (ONU), Martin Griffiths, apelou ao Conselho de Segurança a garantia de "corredores seguros para levar ajuda humanitária a áreas de hostilidades". "Civis em lugares como Mariupol, Kharkiv, Melitopol e outras cidades precisam desesperadamente de ajuda, em particular de suprimentos médicos vitais", advertiu. "Várias maneiras são possíveis, mas isso deve ser feito em conformidade com as obrigações das partes sob as leis da guerra."

Resistência

Na tarde de ontem, enquanto tentava retirar seus alunos da Ucrânia, Serhiy Kvit, reitor da Universidade Nacional da Academia Kyiv-Mohyla (NaUKMA), escutava o som das explosões cada vez mais próximas da capital. "Kiev fica muito perto da fronteira com a Rússia. Por ter uma importância histórica para a Ucrânia, a fronteira tem sido alvejada", contou ao Correio, por telefone. Apesar de os tanques russos estarem posicionados no flanco oeste de Kiev, Serhiy duvida da queda da cidade fundada no ano 482, onde viviam quase 3 milhões de pessoas até antes da guerra. "Os russos não podem ocupar Kiev, ainda que controlem alguns subúrbios e pequenas cidades do entorno", acrescentou. Ele classificou como "ridícula" a retirada da "desnazificação" das demandas do Kremlin.

Professor da mesma universidade e colega de Serhiy, Olexiy Haran enviou duas das três filhas para a Hungria e para a região de Vinnytsya (oeste), considerada mais segura. O especialista acusou os russos de "cinismo". "Eles querem transferir os moradores ucranianos das cidades sitiadas para a agressora Rússia e para a sua aliada Belarus, de onde o meu povo tem sido atingido por disparos de artilharia. A ideia é transformar os ucranianos em reféns", comentou, ao classificar como "maluca" uma primeira proposta de Moscou envolvendo os corredores humanitários. "Os russos deportaram muitos ucranianos para a Sibéria, onde estão detidos em gulags (campos de trabalho forçados). As demandas de Moscou são um blefe."

De acordo com Haran, as forças de Vladimir Putin sofreram imensas perdas no campo de batalha. "O reconhecimento da independência da Crimeia e de Donbass (leste) seria uma insanidade. Os próprios civis ucranianos não concordam com isso. As pessoas estão unidas para pegarem em armas. Mulheres ajudam na confecção de coquetéis Molotov, e voluntários cavam trincheiras na capital. Definitivamente, não nos renderemos. Entregar partes de nosso território é algo fora de questão. Os russos achavam que receberíamos os seus tanques com flores", disse.

Ele acredita que a criação de corredores humanitários reais e viáveis seja uma das condições mais urgentes para um cessar-fogo. "É preciso parar de bombardear civis", acrescentou. Ao mesmo tempo, lembra que a Rússia não é passível de confiança. "Os russos anunciam tal medida e, depois, atacam as pessoas", desabafou, com a voz denotando cansaço.

Cerco

Apesar das movimentações no campo diplomático, a guerra não dá sinais de arrefecimento. Ontem, um bombardeio contra a cidade de Makariv, a cerca de 50km de Kiev, atingiu uma padaria industrial e deixou 13 mortos. A capital ucraniana aguarda, com apreensão e medo, a chegada das tropas russas. "A capital se prepara para se defender", afirmou Vitali Kitschko, prefeito de Kiev, no aplicativo Telegram. "Kiev resistirá! Vai se defender!", acrescentou.

Em vídeo ao vivo divulgado ontem à noite, Zelensky fez questão de provar que continua no comando do país, após uma onda de boatos de que ele estaria se escondendo ou que teria fugido para a Polônia. "Fico aqui, fico em Kiev (...) não tenho medo", afirmou Zelensky.

A tragédia humanitária dos refugiados é agravada pela crise de abastecimento na Ucrânia. Várias cidades sitiadas pelos militares russos sofrem com a escassez de alimentos e de água, além da falta de eletricidade. "Em Kiev, há dificuldades para obtermos leite e derivados, mas ainda temos comida e água. Alguns mercados fornecem água sem custo. Há muita solidariedade entre os ucranianos. Há lugares em que você consegue pão sem pagar", relatou Olexiy Haran. Ele assegura que unidades de defesa territorial, formadas por civis, estão espalhadas por todos os lugares de Kiev, à espera dos russos.

Ainda que os russos insistam sobre poucas baixas civis, o ministro da Educação da Ucrânia, Sergii Shkarlet, disse que 211 escolas foram atingidas durante os bombardeios.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.