Com mais tempo para contemplar e reavaliar, algumas pessoas começaram a explorar novas identidades sexuais e outros desejos "além do binário".
Lauren, com 25 anos de idade, identificou-se como bissexual em 2014.
Essa designação da sua identidade sexual funcionou bem até a pandemia. Com seu programa de mestrado agora conduzido de forma virtual e com eventos sociais e transporte diário excluídos da sua agenda, Laura subitamente percebeu que tinha mais tempo sozinha para contemplar sua identidade.
"Ter todo esse tempo e consumir muita informação me fez refletir mais sobre meus relacionamentos do passado, especialmente com homens", afirma ela. "Como eu pude não perceber que todos os relacionamentos que tive com homens foram totalmente insatisfatórios?"
O isolamento induzido pelo lockdown ofereceu a muitas pessoas a oportunidade de analisar mais profundamente certos elementos das suas vidas e suas identidades, sejam os lugares onde elas vivem, seus empregos ou suas relações românticas e familiares. Entre essas mudanças íntimas, pesquisas indicam que o comportamento das pessoas com relação à sexualidade também evoluiu em meio à pandemia.
O aplicativo de encontros Bumble analisou mais de 4.000 usuários nos EUA, Reino Unido, Irlanda, Austrália e Canadá em agosto de 2020 (dados analisados pela BBC) e 21% deles afirmaram estar planejando "expressar sua sexualidade de forma diferente... em comparação com um ano atrás".
Outra pesquisa do Bumble demonstrou que 14% mudaram seus desejos sexuais durante a pandemia, optando, por exemplo, por relacionamentos do mesmo sexo, enquanto anteriormente só haviam tido relacionamentos com pessoas de outro gênero.
E ainda outra pesquisa conduzida entre março e julho de 2020 com pessoas LBTGQIA+ pelo Laboratório de Relações Sociais, Comportamentos e Diversidade da Universidade Trent de Ontário, no Canadá, analisada pela BBC, demonstrou que 11% "sentiram que sua capacidade de sair da sua... identidade mudou devido à covid-19". Destes, diversos relataram que essa mudança ocorreu porque, durante a pandemia, houve "tempo para poder descobrir minha identidade sexual".
Lauren conta que, antes da pandemia, ela quase não tinha tempo livre depois de trabalhar, ir para a escola e ter sua vida social. "Eu [não conseguia] lidar com grandes mudanças de vida e a mudança de identidade parecia uma grande mudança de vida."
Mas a desaceleração forçada ofereceu o tempo de que ela precisava para reexaminar sua sexualidade. Conversando com seu terapeuta e observando outras mulheres que antes se identificavam como bissexuais e surgiram como lésbicas no TikTok, ela própria passou a identificar-se como lésbica.
Essas "grandes mudanças de vida" - que antes eram assustadoras demais para serem consideradas, ou mesmo não prioritárias - agora são objeto de análise de cada vez mais pessoas, especialmente de algumas mulheres que começaram a questionar as normas culturais que sempre adotaram.
Reavaliação Reavaliação dos 'padrões normais'
"Todos têm a vida tão ocupada que é muito fácil tentar escapar", segundo a psicóloga clínica de Nova York, nos Estados Unidos, Jennifer Guttman. Em outras palavras, ela explica que é natural que as pessoas coloquem o autoconhecimento em segundo plano.
Com relação à sexualidade, isso significa que, para muitas pessoas, é mais simples definir um padrão de pensamento "heteronormal", sem questionar a heterossexualidade padrão com a qual elas cresceram, afirma Karen Blair, chefe do Laboratório de Relações Sociais, Comportamentos e Diversidade da Universidade Trent.
"Grande parte da nossa imprensa e cultura ainda envia a mensagem de que a maioria de nós será heterossexual", segundo Blair. Como a sexualidade existe em um espectro no qual "muitos, quando não a maioria, se enquadram em algum ponto intermediário", acrescenta ela, não há muita motivação para as pessoas questionarem sua sexualidade se os "padrões normais" se encaixarem de forma suficiente.
Mas, quando as pessoas conseguiram "pressionar a tecla de pausa durante o lockdown", Guttman afirma ter observado "mais pacientes do que nunca" explorando suas orientações sexuais. Dos seus 65 pacientes, ela estima que 10 a 12 repensaram sua sexualidade naquele período, em comparação com apenas um cliente que havia feito o mesmo antes da pandemia.
"Todos eles começaram a observar que estavam se sentindo sem rumo, perdidos, ansiosos e deprimidos. O desconforto que eles sentiam consigo próprios era perturbador para eles", afirma Guttman. Muitos começaram a enfrentar esse desconforto avaliando se estavam no caminho certo na carreira, mas, ao longo do tempo, acabaram se aprofundando "muito além do trabalho", segundo ela.
'Comecei a pandemia hétero'
A pandemia reduziu as opções de encontros para muitas pessoas, mas outras viram uma nova porta se abrindo.
Alexa, com 24 anos de idade, residente em Londres, identificava-se há muito tempo como heterossexual, mas já vinha questionando sua sexualidade no quarto ano da universidade em Nova York, nos Estados Unidos, antes da pandemia de covid-19. E, quando a pandemia a levou para o namoro online, Alexa descobriu que era mais fácil mudar os tipos de parceiros que ela estava procurando - ela podia fazer isso no conforto da sua própria casa.
No início de 2021, Alexa decidiu mudar suas configurações no Tinder de apenas homens para "qualquer pessoa". A facilidade da mudança fez com que a exploração, de certa forma, parecesse ser de baixo risco. Ela ainda "não estava certa" da sua identidade sexual na época, mas, ao alterar suas configurações no aplicativo de encontros, "pelo menos a opção estava aberta", segundo ela.
Segundo as pesquisas de Blair, essa experiência é relativamente comum. Com as pessoas passando mais tempo "cortejando" online antes de encontrar-se pessoalmente devido às restrições relativas à pandemia, "pode ter sido mais provável que as pessoas brincassem com a ideia de 'assinalar a outra alternativa' quando questionadas sobre quem gostariam de conhecer", afirma ela. Namorar alguém de gênero diferente do que as pessoas costumavam tornou-se "um pouco mais acessível".
Tanto os especialistas quanto as pessoas em busca de encontros afirmaram à BBC que a mídia também contribuiu para que as pessoas repensassem suas orientações sexuais - incluindo as redes sociais, podcasts e programas de televisão - que as pessoas vinham acompanhando com mais intensidade durante o isolamento em casa. Guttman chegou a aconselhar alguns dos seus pacientes a ouvir podcasts e assistir a programas "com mais interações LGBTQIA+" para "normalizar" os novos testes dessas identidades.
Ao mesmo tempo, muitos usuários do TikTok, como Violet Turning (educadora sexual de Nova York, nos Estados Unidos), observaram um aumento do número de mulheres jovens discutindo sua mudança de identificação de heterossexuais para lésbicas, queer ou bissexuais durante a pandemia.
"Todo o meu feed era de mulheres jovens que diziam 'entrei na pandemia hétero e agora estou em um relacionamento lésbico'", afirma Turning. Algumas mencionavam ter "suprimido" esses desejos até que a pandemia ofereceu espaço para explorá-los, enquanto outras diziam que dedicaram tempo a observar seu histórico de relacionamentos heterossexuais e começaram a questionar sua sexualidade depois de aprender mais sobre a opressão das mulheres nesses contextos.
Turning considera que a divulgação dessas informações no TikTok "legitima para as pessoas... explorar a sexualidade além do binário".
Este foi o caso de Lauren, que instalou o TikTok durante a pandemia e imediatamente encontrou vídeos de pessoas que, como ela, haviam se identificado como bissexuais antes de se apresentarem como lésbicas. Ela atribui isso ao aumento da quantidade de pessoas envolvidas em conversas online em um momento em que as restrições causadas pela pandemia limitaram muito a vida social presencial.
Existem diversas razões pelas quais a fluidez sexual parece ser mais comum entre as mulheres que entre os homens. Essa relação é refletida nos pacientes de Jennifer Guttman - dos cerca de 12 pacientes que exploraram mudanças na sua orientação sexual durante o lockdown, apenas dois eram homens.
Introspecção mais profunda após os lockdowns?
Mas observar as pessoas reexaminarem suas orientações sexuais no TikTok é diferente de ver as mudanças surgirem publicamente na vida de uma pessoa.
Quando Alexa concluiu que era queer, foi "muito assustador", segundo ela. Primeiro, porque ela sentiu que não era a pessoa que pensava que fosse; e, segundo, porque essa conclusão alterava totalmente sua visão de futuro, que antes ela pensava que se basearia em viver a vida de uma pessoa heterossexual.
E contar aos demais também parecia assustador. "Fiquei preocupada com o que as pessoas pensariam de mim e sei que isso é homofobia internalizada", afirma ela. Ela também não gostava de chamar a atenção para si própria e hesitava em dar um rótulo à sua orientação.
Guttman observou esse desconforto com rótulos em diversos pacientes que repensaram suas orientações ao longo dos últimos dois anos. Muitos sentiam "pressão interna" para "definir ou não um rótulo rapidamente", afirma ela, mesmo se ainda estivessem na fase exploratória.
Lauren já se apresentou como lésbica para seus amigos e a família, incluindo sua mãe católica. "Ela foi provavelmente a pessoa mais difícil para quem contar", segundo ela. A sua mudança de identidade durante a pandemia permanecerá a longo prazo. Ela conta que agora está apenas namorando "mulheres e pessoas não binárias, e ninguém que se identifique ativamente como homem cis".
Mas ainda é difícil dizer se as pessoas manterão esse nível de introspecção à medida que a vida se encaminha para o "normal". A covid-19 e as restrições relacionadas não desapareceram, mas, segundo as observações de Guttman, pelo menos "as pessoas continuaram a dedicar-se à reflexão por meio de livros de autoajuda, podcasts e terapia".
"Também observei que todas as mudanças que as pessoas fizeram com relação à sua fluidez ou orientação sexual durante a pandemia permaneceram à medida que o mundo se abria", conclui ela.
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Worklife.
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