A invasão da Ucrânia por tropas russas no dia 24 de fevereiro foi precedida por uma escalada no discurso agressivo do presidente Vladimir Putin em relação ao país vizinho.
Em suas manifestações, expressões como "desnazificação" e "defender pessoas que sofrem perseguição e genocídio" ganharam peso.
O tom belicoso evocou os momentos mais tensos da crise entre os dois países entre novembro de 2013 e abril de 2014.
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Na época, Putin disse que a Ucrânia estava à mercê de "nazistas, nacionalistas e antissemitas". O impacto das declarações de Putin nos últimos dias foi tão grande que o próprio presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky, foi à TV para lembrar sua própria história como judeu que perdeu parentes no Holocausto.
Na última década, a emergência de grupos, organizações e mesmo políticos inspirados pelo nazismo e pelo fascismo ocorreu em várias partes do mundo, incluindo a Ucrânia.
Até que ponto, porém, o nacionalismo ucraniano é dominado ou influenciado por essa visão política? O atual governo ucraniano é nazista, fascista ou de extrema-direita? O antissemitismo tornou-se uma marca registrada da Ucrânia desde 2014?
As acusações de nazismo, fascismo e antissemitismo contra a Ucrânia tornaram-se moeda corrente no discurso de Putin depois de 22 de fevereiro de 2014.
Nesse dia, caiu o governo do presidente Viktor Yanukovitch em consequência de uma onda de protestos que teve, no auge, o apoio da maioria da população ucraniana. A exceção eram as regiões do Donbas, no leste, e da Crimeia, no sul.
Yanukovitch, um oligarca alinhado a Moscou, tinha iniciado sua carreira política em Donetsk, cidade mais importante de Donbas. Historicamente, a Crimeia pertencia à Rússia e foi cedida à Ucrânia pelo então líder soviético Nikita Kruschev.
Se houve um ponto de união entre os manifestantes que foram à Praça Independência, no centro de Kiev, a capital, contra Yanukovitch, foi o repúdio à corrupção no governo. Estavam na praça nacionalistas e internacionalistas, liberais e comunistas, cristãos ortodoxos, judeus e muçulmanos.
Simpatizantes do movimento disseram à época que os três primeiros mortos pela repressão policial determinada pelo governo Yanukovitch foram um bielorusso, um armênio e um judeu - minorias com presença significativa na Ucrânia.
O nacionalismo ucraniano tem raízes no início da era moderna, mas, como em toda a Europa, ganhou força em meados do século XIX. Ao longo da história, o atual território ucraniano esteve dividido entre Áustria-Hungria, Polônia e Rússia, e levantes protagonizados por populações ucranianas ergueram-se, em distintos momentos, contra cada um desses Estados.
Embora cultuem pais fundadores como o poeta romântico Taras Shevchenko (1814-1861), parte dos atuais partidos e grupos nacionalistas ucranianos consideram-se herdeiros de um grupo nacionalista armado surgido nos anos 1930, depois que a União Soviética anexou uma parte da Ucrânia polonesa por meio do Pacto Ribentropp-Molotov, em 1939.
"Em termos gerais, o nacionalismo na Ucrânia é um movimento bem abrangente, que incorpora várias concepções, incluindo a de que a Ucrânia é uma nação com direito à autodeterminação, ou seja, a ter um Estado próprio", afirma Bruno Mariotto, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
"Só que, na prática, essa questão é bem mais complexa. Quem é ucraniano? É quem fala ucraniano? Quem tem ligações com a história ucraniana? Se for isso, teremos um conceito muito restrito."
Combate aos soviéticos
Foi na Galícia, que era parte do Império Austro-húngaro e, a partir de 1918, da Polônia, que nasceu em 1909 Stepan Andriovich Bandera. Filho de um sacerdote católico de rito grego, Bandera foi impedido pelas autoridades polonesas de viajar para fazer estudos universitários na Tchecoslováquia e passou por distintas organizações nacionalistas ucranianas. Por sua atividade política, o governo polonês condenou-o à morte.
Com o início da II Guerra Mundial, foi preso pelos nazistas após a invasão da Polônia e depois libertado na esperança de que ajudasse a sublevar a Ucrânia soviética contra Moscou durante a Operação Barbarossa, como foi chamada a invasão da União Soviética pela Alemanha em 1941.
Até o final da guerra, o movimento nacionalista de Bandera promoveu massacres de poloneses, russos e judeus - o líder acreditava que estes últimos eram responsáveis pelo domínio soviético na Ucrânia. Sua morte, em 1959, em Munique, na então Alemanha Ocidental, foi perpetrada por agentes soviéticos.
Bandera era certamente antissemita, mas também antipolonês e anti-russo. Imaginava uma Ucrânia independente e unitária em termos étnicos, linguísticos e culturais, em termos não muito diferentes de outros nacionalistas da Europa central e oriental da época, como o líder da independência polonesa Jozef Pilsudski.
Nada era mais perigoso para o regime soviético no momento em que, detido o avanço alemão, iniciou uma contra-ofensiva em direção além das fronteiras soviéticas no Leste europeu. Moscou moveu uma intensa campanha de descrédito contra Bandera e seus seguidores, destacando sua comprovada colaboração com os nazistas.
Essa não era, porém, uma peculiaridade do ucraniano: entre 1939 e 1941, o colaboracionismo de Bandera com Hitler empalidece diante da mais do que ativa contribuição soviética ao esforço de guerra alemão a partir do Pacto de Não-agressão de 1939.
O curso da guerra, porém, ao opor Hitler e Stalin, permitiu que Moscou voltasse a utilizar o epíteto de "fascistas" contra todos os nacionalistas que se interpusessem em seu caminho atrás do que viria a ser conhecido como Cortina de Ferro.
Entre os partidos que rendem homenagem a Bandera, estão Svoboda (Liberdade), que chegou a obter 10,44% dos votos em eleições parlamentares nacionais em 2014 e que tem acusados de antissemitismo entre seus líderes.
Svoboda fez parte do primeiro governo pós-Yanukovitch, encabeçado pelo presidente Petro Poroshenko, mas seus líderes se parecem mais com populistas tradicionais do que com ideólogos nazistas e adotam como modelo partidos de direita da Europa ocidental como a francesa Frente Nacional (FN).
O ministro do Interior de Poroshenko, Arsen Avakov, era ligado a uma milícia de direita, o Batalhão de Azov, formada por indivíduos com passado de atividade em organizações neonazistas.
Svoboda, Pravyi Sektor (Setor de Direita) e outros grupos formaram desde 2014 suas próprias milícias armadas, muitas das quais passaram a integrar forças regulares ucranianas como a Polícia de Patrulha para Operações Especiais da Ucrânia e a Guarda Nacional da Ucrânia, empregadas contra os separatistas pró-Rússia na região de Donbass.
O Batalhão de Azov foi apontado como responsável por um esquema de recrutamento de combatentes para a Ucrânia em sete municípios do Rio Grande do Sul, em 2016. A Polícia Federal (PF) deflagrou, na época, a Operação Azov para desmantelar o grupo, efetuando a detenção de um suspeito com material neonazista.
Apesar de ter obtido atenção intensiva da imprensa na Rússia e no resto do mundo, a extrema-direita na Ucrânia raramente ultrapassou 3% dos votos desde a independência do país da União Soviética, em 1991.
Com exceção de Svoboda, partidos de extrema-direita conseguem eleger raros parlamentares em distritos com um único representante, e nenhum de seus candidatos presidenciais garantiu mais de 5% dos votos em eleições nacionais. Segundo a pesquisadora Alina Polyakova, da Universidade de Berna, na Suíça, o apoio a esses grupos está concentrado sobretudo na Galícia, no oeste da Ucrânia.
Uma estimativa dos cientistas políticos Andreas Umland e Anton Shekhovtsov sugere que, em 2008, o número de neonazistas organizados na Ucrânia não excedia 2 mil, enquanto na Rússia grupos fascistas reuniam na mesma época 20 mil a 70 mil membros.
"É inegável a presença de grupos nacionalistas e de extrema-direita na Ucrânia atual. A questão que fica é qual o seu nível de ingerência no país. Putin diz que esses grupos têm enorme influência na Ucrânia, especialmente nas forças armadas. Por outro lado, o governo ucraniano tenta minimizar esse peso, especialmente em razão do perigo que representam para outro ator regional importante, a Polônia. Os antecessores dos grupos atuais praticaram extermínio em massa de poloneses, muitas vezes com assistência dos nazistas", lembra Mariotto.
Grupos menores, como o Exército Rebelde Ucraniano (UPA), também compõem a extrema direita ucraniana. Embora adotem um estilo paramilitar e utilizem símbolos como a cruz céltica, que lembra a suástica, esses grupos se legitimaram mais por participar da revolução de 2014 do que pela ideologia.
"Esses setores (de extrema-direita) cresceram dos anos 2000 para cá de forma inversamente proporcional ao distanciamento da Ucrânia da órbita russa. Quanto mais para a Europa a Ucrânia se inclinava, mais a extrema-direita se manifestavam em favor da Europa e contra a Rússia. Isso reflete fenômenos mais antigos, dos tempos soviéticos, quando esses grupos também existiam mas ficavam sufocados", analisa Vinicius Teixeira, doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor de Geopolítica da Universidade do Estado de Mato Grosso (Uemat).
Durante o levante contra Yanukovitch, não houve registro de ataques na praça contra manifestantes por religião, etnia, orientação sexual ou preferência política. Ataques antissemitas são relativamente raros na Ucrânia: entre 2004 e 2014, houve 112 ações violentas de caráter antissemita no país, com apenas quatro no último ano da série, segundo o Congresso Judaico Euroasiático.
Pesquisas indicam que visões xenófobas, sexistas, racistas e homofóbicas não são mais expressivas entre o eleitorado de partidos de extrema-direita do que de outros partidos na Ucrânia. Em 2012, por exemplo, parlamentares do Partido Comunista da Ucrânia e do Partido das Regiões apresentaram projetos de lei anti-LGBT.
"Apesar de Zelensky ser judeu e ter perdido parentes no Holocausto, ele nada fez para coibir a expansão de Svoboda e outras milícias. O uso de símbolos nazistas não é proibido na Ucrânia", afirma Andrew Traumann, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba) e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Oriente Médio (Gepom).
"Esses grupos têm pequena representação no parlamento e não conseguem sucesso nas eleições, mas são muito ativos e têm política muito xenófoba, homofóbica e anticatólica, perseguem russos e migrantes."
Na região da Galícia, depois de 2014, Bandera passou a ser cultuado como uma figura mítica, e o governo ucraniano incluiu-o entre os heróis da pátria. Para os ucranianos da maior parte do país, porém, é pouco mais que um símbolo.
Pouco depois da queda de Yanukovich, em março de 2014, representantes das quatro grandes religiões da Ucrânia - cristã ortodoxa, católica, muçulmana e judaica - rezaram juntos em homenagem ao bicentenário do poeta nacional Taras Shevchenko.
"Bandera é considerado herói nacional porque se considera que sua aliança com os nazistas não se deu por afinidade ideológica, mas para lutar contra Stalin. Não se pode comprar a narrativa de que a Ucrânia é nazista, como afirma Putin, mas tampouco é possível dizer que o neonazismo no país seja insignificante", complementa Traumann.
Se havia um personagem que, para os manifestantes de 2014, lembrava Hitler, não era exatamente Bandera. Um cartaz em que Putin aparecia com bigodinho e cabelo negro caído sobre a testa era popular na Praça Independência, em Kiev. Um letreiro dizia: "Putin, vá embora".
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