"Se eu pudesse ir embora da Rússia agora, eu faria. Mas não posso deixar meu emprego", diz Andrey, um designer industrial de 31 anos.
Ele não terá como pagar o empréstimo que tomou no banco para comprar sua casa em Moscou agora que as taxas de juros dispararam.
Milhões de russos como ele estão começando a sentir o efeito das sanções econômicas destinadas a punir o país por invadir a vizinha Ucrânia.
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"Estou tentando encontrar novos clientes no exterior o mais rápido possível e sair da Rússia com o dinheiro que estava economizando para a primeira parcela da casa. (...) Estou com medo aqui — pessoas foram presas por falarem contra 'a linha do partido'. Eu estou com vergonha e nem votei nas pessoas que estão no poder."
Como outros entrevistados nesta reportagem, não estamos usando seu nome completo ou mostrando seu rosto por motivos de segurança. Alguns nomes foram alterados.
As sanções que agora atingem a Rússia estão sendo chamadas por muitos de guerra econômica — elas visam isolar o país e criar uma profunda recessão. Os líderes de países como EUA e Reino Unido esperam que as medidas inéditas façam o Kremlin mudar de ideia.
Os russos comuns enfrentam a perda de suas economias. Suas vidas já estão sendo interrompidas.
As sanções contra alguns bancos russos impedir que eles usem Visa e Mastercard e, consequentemente, Apple Pay e Google Pay.
O gerente de projetos Daria, de 35 anos, disse que isso o impossibilita de usar o metrô de Moscou.
"Sempre paguei com meu telefone, mas agora simplesmente não funciona. Outras pessoas estão tendo o mesmo problema. Descobrimos que as catracas são operadas pelo banco VTB que está sob sanções e não consegue aceitar Google Pay e Apple Pay. Eu tive que comprar um cartão de metrô", disse ele à BBC. "Também não pude pagar em uma loja hoje, pelo mesmo motivo."
Na segunda-feira (28/2), a Rússia mais que dobrou sua taxa de juros para 20% em depois que a cotação do rublo despencou por causa das sanções. A Bolsa de Valores russa permanece fechada em meio a temores de uma venda em massa de ações.
O Kremlin diz que tem recursos suficientes para resistir às sanções, mas especialistas têm demonstrado ceticismo em relação à real capacidade do governo russo.
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No fim de semana, o Banco Central russo pediu calma à população em meio a temores de que haja uma corrida aos bancos — o que acontece quando muitas pessoas tentam sacar dinheiro ao mesmo tempo.
"Não há dólares, nem rublos — nada! Bem, há rublos, mas não estou interessado neles", disse Anton (nome alterado), que tem quase 20 anos e estava na fila de um caixa eletrônico em Moscou.
"Eu não sei o que fazer agora. Eu tenho medo de que estejamos nos transformando na Coreia do Norte ou no Irã agora."
Comprar moeda estrangeira custa aos russos cerca de 50% a mais do que custava há uma semana — nas raras vezes em que eles conseguem ter acesso a elas.
No início de 2022, um dólar era negociado por cerca de 75 rublos e um euro por 80. A guerra ajudou a estabelecer novos recordes: na segunda-feira, um dólar chegou a custar 113 rublos e um euro, 127.
Para os russos, a cotação do rublo-dólar é uma questão delicada há tempos.
Na década de 1990, após o colapso da União Soviética, o dólar era a única moeda forte com a qual os russos podiam contar — a aposta mais segura era manter suas economias em dólar debaixo do colchão.
Quando o governo do presidente Boris Yeltsin decretou calote da dívida russa em 1998, aqueles que estavam com seu dinheiro embaixo do colchão sentiram que haviam feito a coisa certa.
Mas na década seguinte várias medidas do Banco Central ajudaram a tranquilizar os russos sobre o valor do rublo. Os depósitos em moeda russa começaram a crescer, assim como a quantidade de dinheiro que os russos investem nas ações de empresas russas.
No entanto, sempre que há alguma incerteza, os russos sempre correm para o caixa eletrônico mais próximo para sacar dólares.
E desta vez não foi diferente.
Assim que a guerra estourou na Ucrânia na semana passada, os russos lotaram os caixas eletrônicos, lembrando-se das lições aprendidas em crises anteriores.
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Ilya (nome alterado), que está na casa dos 30 anos, acabou de pagar o financiamento de sua casa em Moscou. Ele diz que agora não pode se mudar "tão cedo".
"Quando a operação em Donbas começou, eu fui ao caixa eletrônico e saquei as economias que tinha no Sberbank em dólares. Agora eu literalmente as guardo debaixo do travesseiro."
"O resto das minhas economias ainda está no banco: metade em dólares e o resto em rublos. Se as coisas piorarem, vou sacar tudo. Eu estou com medo porque acho que vamos ter uma onda de assaltos. Mas é o que é."
Vídeos e fotos nas redes sociais mostraram longas filas se formando em caixas eletrônicos e casas de câmbio em toda a Rússia nos últimos dias, com pessoas preocupadas que seus cartões bancários possam parar de funcionar ou que limites sejam colocados na quantidade de dinheiro que podem sacar.
Dólares e euros começaram a se esgotar algumas horas após a invasão. Desde então, quantidades muito limitadas dessas moedas estão disponíveis. E há um limite de quantos rublos se pode sacar.
De pé em uma fila em Moscou, Evgeny (nome alterado), de 45 anos, disse que queria sacar dinheiro para pagar o financiamento de sua casa.
"Todo mundo que conheço está ansioso. Todo mundo está estressado. Não tenho dúvidas de que a vida vai piorar. A guerra é horrível."
"Eu acho que todos os países são hipócritas e agora os 'países grandes' estão medindo forças, tentando provar qual deles é mais legal que o outro. E todas as pessoas estão sofrendo."
Marat, de 35 anos, diz: "Hoje é o primeiro dia em que decidi sacar dinheiro e não tive problemas. Eu saquei rublos por precaução. Eu não sou muito bom em fazer previsões, mas suspeito que nossa vida vai piorar. O tempo dirá."
O problema do dinheiro não se limita a Moscou: as pessoas estão buscando dólares ou euros em lugares como Perm, Kostroma, Belgorod e outras cidades, informa a BBC Russian (serviço de notícias em idioma russo da BBC).
Um especialista em TI anônimo até criou um bot do Telegram que verifica automaticamente se há euros ou dólares nos caixas eletrônicos do Tinkoff, um banco privado popular, e compartilha a localização do ponto com assinantes.
Muitos estão tentando pré-encomendar dinheiro por meio de seus aplicativos de bancos, um recurso do sistema bancário da Rússia, que é bastante desenvolvido.
Na noite de domingo (27/2), quando as sanções contra as reservas do Banco Central russo foram anunciadas, ainda era possível usar um aplicativo para encomendar um dólar por até 140 rublos e um euro por até 150.
Mas na segunda-feira, os clientes do maior banco estatal da Rússia, o Sberbank, disseram à BBC Russian que não conseguiam mais encomendar dinheiro pelo aplicativo — seria preciso ir ao escritório e assinar um formulário.
Os bancos negam que haja problemas de liquidez — e os analistas concordam que é mais provável que a escassez de dinheiro nos caixas eletrônicos reflita uma tentativa de evitar uma corrida aos bancos.
O Kremlin disse que a Rússia estava pronta para enfrentar sanções, embora não tenha dito se as empresas receberão ajuda extra, como aconteceu durante a pandemia.
Mas os russos comuns — muitos dos quais se informam por meios de comunicação controlados pelo Estado, que repetem o discurso do Kremlin — vão começar em breve a perceber diferenças em suas vidas.
Os moradores de Moscou já estão relatando algumas filas em supermercados, com as pessoas pensando em estocar mercadorias que podem ser escassas devido a aumentos de preços ou restrições comerciais.
As empresas russas podem acabar cortando horas ou interrompendo sua produção à medida que as sanções começarem a fazer efeito. Além da desvalorização de suas economias, prevê-se que muitos russos possam perder seus empregos jà medida que a economia russa está sendo cortada dos mercados financeiros globais.
Para os russos, tudo isso traz de volta memórias do que aconteceu quando Putin anexou a Crimeia em 2014 e houve filas de horas na frente dos bancos.
Na época, as casas de câmbio tiveram que comprar às pressas novas placas eletrônicas com cinco dígitos, quando as antigas já não tinham mais espaço para informar a cotação.
Naquela época, um dólar normalmente custava de 30 a 35 rublos — uma quantia impensável nos dias de hoje.
Colaborou Amalia Zatari, da BBC Russian em Moscou
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