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Como a guerra na Ucrânia tem causado rachas dentro da direita e da esquerda no Brasil

Faixa de protesto em Brasília mistura bandeira do Brasil com símbolo adotado pelo Right Sector, grupo de extrema direita ucraniano

Sempre bastante ativa nas redes sociais, parte da direita brasileira está atipicamente silenciosa com relação à guerra entre Rússia e Ucrânia.

O silêncio, também adotado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), tem motivo, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil: a ala mais radicalizada da direita brasileira está dividida nesse conflito, pois parte dela flerta com a direita ucraniana, enquanto outra admira Putin e a direita russa.

Na dúvida, ideólogos e influenciadores têm preferido não tratar do assunto nas redes. Ou, para não correr riscos, batem no presidente americano Joe Biden, considerado um inimigo comum, por ser entendido como um símbolo da "elite globalista" combatida por essa direita.

À esquerda, alguns partidos e dirigentes partidários culpam a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar formada por 30 Estados, entre eles EUA, Reino Unido, França e Alemanha) e os Estados Unidos pela crise, gerando críticas acaloradas nas redes.

Alguns cientistas políticas avaliam o posicionamento dessa ala da esquerda como fruto de uma leitura datada do cenário geopolítico internacional e observam que isso aliena parte do eleitorado de centro, num momento em que um candidato da esquerda lidera as pesquisas para as eleições em outubro e tenta unir forças para derrotar Bolsonaro nas urnas.

A BBC News Brasil ouviu David Magalhães (PUC-SP), Claudio Couto (FGV) e Celso Rocha de Barros para explicar os posicionamentos da direita e da esquerda brasileiras com relação ao atual conflito no Leste europeu.

Direita dividida: 'Ucranizar o Brasil'

David Magalhães, professor de relações internacionais na PUC-SP e coordenador do Observatório da Extrema Direita, explica a divisão da direita bolsonarista brasileira nessa guerra.

"De um lado, tem uma parte da extrema direita que, desde 2013, 2014, se inspira na extrema direita ucraniana e tudo que aconteceu na Ucrânia no contexto do que eles conhecem lá como Euromaidan", diz Magalhães.

Ele se refere às manifestações que aconteceram depois que o então presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovytch, decidiu abdicar da entrada do país na União Europeia, devido a pressões do presidente russo Vladimir Putin.

"Parte dessas manifestações foram muito violentas, perpetradas por organizações paramilitares de extrema direita, muitas das quais nasceram no contexto desses protestos, caso do Batalhão Azov e do Pravyi Sektor, duas organizações que têm bastante influência em grupos paramilitares e grupos brasileiros da extrema direita", observa.

Ele cita como exemplo o grupo 300, de Sara Winter, que sempre afirmou ter sido treinada na Ucrânia.

Reprodução/Twitter
A extremista de direita Sara Winter, fundadora do grupo radical 300, sempre afirmou ter sido treinada na Ucrânia

O professor da PUC observa que virou uma "moda", a partir de 2015 e 2016, em manifestações da direita e de grupos bolsonaristas o uso do bordão "ucranizar o Brasil".

A expressão se referia a promover uma desobediência civil violenta, com o objetivo de expurgar o que esses grupos entendiam como as elites velhas e corruptas do Brasil, a direita fisiológica (aquela que atua movida pela troca de favores e por interesses privados, como o chamado Centrão) e a esquerda progressista.

"Além disso, a Ucrânia, no conflito com a Rússia, é entendida [por essa direita] como bastião de uma visão judaico-cristão ocidental, católica principalmente", diz o pesquisador.

Direita dividida: Putin como inspiração

Outra parcela da direita tem conexões diversas com a Rússia, observa o professor da PUC.

"Parte da direita se inspira na natureza do regime russo, que é uma natureza ultra conservadora e iliberal, na medida em que tem violado sistematicamente direitos de minorias, como grupos LGBTQIA+ e feministas", afirma Magalhães.

Além disso, essa parcela da direita também se sente inspirada pela figura de Putin, uma liderança vista como masculina, viril e "testosterônica", nas palavras do professor, que avalia que essa identificação é fruto da cultura patriarcal tanto do Brasil, como da Rússia.

"Um líder com traços ostensivamente autoritários, combinados com uma agenda reacionária no campo cultural e moral agrada segmentos da direita brasileira. O próprio Bolsonaro se vê atraído ou vê como a um espelho uma figura com esses traços do Putin", afirma.

Presidência da República
'Bolsonaro se vê atraído ou vê como a um espelho uma figura como Putin', diz professor da PUC-SP

O coordenador do Observatório da Extrema Direita observa que há ainda uma terceira fração da direita bolsonarista brasileira, que são aqueles inspirados por Steve Bannon, ex-estrategista-chefe de Donald Trump e próximo do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

Trata-se de uma direita tradicionalista e contrária à modernidade liberal, que vê Putin como um representante da luta contra os direitos LGBTQIA+, o feminismo e demais pautas da esquerda e do liberalismo progressistas. Na luta contra a Ucrânia, Bannon se posicionou fortemente pró-Rússia, lembra Magalhães.

Paralisia e silêncio à direita

"Essa divisão produz uma paralisia de posições", observa o professor.

"Bolsonaro sabe que existe parcela do seu núcleo ideológico que está com a Ucrânia e outra, que está com Putin. Por isso a posição dele nesse momento é uma posição de uma neutralidade sensivelmente pró-Putin", avalia.

Segundo Magalhães, os ideólogos e influenciadores da direita brasileira têm optado pelo silêncio ou por ataques a Biden devido a um constrangimento adicional.

Mesmo aqueles que defendem a Ucrânia não querem ser vistos como estando do mesmo lado que líderes como Justin Trudeau, Joe Biden, Emmanuel Macron e Olaf Scholz, considerados por essa direita como a "elite globalista" por excelência.

EPA
Trudeau, Biden e Macron durante encontro do G7 na Inglaterra em 2021

Já Bolsonaro, além de não querer desagradar sua base, também leva em conta ao não se posicionar os interesses comerciais do setor agroexportador brasileiro, que depende da Rússia para a importação de fertilizantes.

Além disso, dias depois de voltar de uma viagem ao país euroasiático, seria para ele um constrangimento condenar de forma veemente um presidente que ele disse buscar a paz e a quem Bolsonaro afirmou ser solidário.

Apesar do silêncio de Bolsonaro, na noite sexta-feira (25/2), o Brasil foi um dos 11 países a votar, no Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU), para condenar a invasão da Rússia à Ucrânia.

Divisões dentro do governo Bolsonaro

Quanto à fala do vice-presidente Hamilton Mourão, que na quinta-feira (24/2) comparou Putin ao ditador nazista Adolf Hitler, sendo posteriormente desautorizado por Bolsonaro, o professor avalia que isso também revela as distintas posições da direita dentro do próprio governo.

"Acredito que a maioria dos militares, pelo menos o generalato — a cúpula das Forças Armadas —, não concorda com a visão de Bolsonaro. Porque, se tem algo que o militar de carreira presa é a questão da soberania e da integridade territorial. E está líquido e certo que tem uma potência que agrediu e violou a soberania territorial de outro país", diz Magalhães.

Ele lembra ainda que o grupo olavista do qual o ex-chanceler Ernesto Araújo faz parte também sempre foi antipático à Rússia.

Isso porque Olavo de Carvalho defendia que Rússia e China estariam juntas numa mesma frente de dominação global, chamada por ele de frente Sino-Russa. O ideólogo identificava ainda outras duas supostas frentes "globalistas": a Ocidental, de George Soros e os EUA, e a Islâmica, formada por um califado internacional.

Numa entrevista recente à Jovem Pan, Araújo condenou a visita de Bolsonaro a Putin.

Parcela da esquerda culpa os EUA e a Otan

Se à direita tem imperado o silêncio, à esquerda, alguns partidos e lideranças culparam os Estados Unidos e o avanço da Otan rumos às fronteiras russas pela invasão de Putin à Ucrânia.

Foi o caso, por exemplo, da ex-deputada federal Manuela D'Ávila (PCdoB-RS), candidata a vice na chapa de Fernando Haddad (PT) à Presidência nas eleições de 2018.

"Rússia e Ucrânia partilham mais do que fronteiras, povos e culturas. Uma saída pacífica deve ser buscada, através da diplomacia e diálogo e em consonância com o direito internacional e o princípio da não-intervenção", escreveu a deputada no Twitter na quinta-feira (24/2).

"Isto requer que as legítimas preocupações da Rússia com sua segurança sejam consideradas, e que seja revertido o cerco da Otan às suas fronteiras russas", completou a ex-deputada.

O presidente nacional do PSOL, Juliano Medeiros, reagiu a uma postagem de Biden dizendo: "Você realmente acredita que seu governo não tem qualquer responsabilidade por essa crise depois que tentou levar a Ucrânia para a Otan? Você também é culpado por essa situação!"

A direção do PT optou por uma nota mais sóbria, afirmando que "a resolução de conflitos de interesses na política internacional deve ser buscada sempre por meio do diálogo e não da força, seja militar, econômica ou de qualquer outra forma".

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva condenou a guerra em sua conta no Twitter e em declarações à imprensa.

No entanto, uma nota publicada pela bancada do PT no Senado, e posteriormente apagada e desautorizada, gerou fortes críticas nas redes.

A nota, assinada pelo senador Paulo Rocha, líder da bancada do PT, começava dizendo: "O PT no Senado condena a política de longo prazo dos EUA de agressão à Rússia e de contínua expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em direção às fronteiras russas. Trata-se de política belicosa, que nunca se justificou, dentro dos princípios que regem o Direito Internacional Público."

Reprodução
Nota publicada pela bancada do PT no Senado, posteriormente apagada e desautorizada

'Visão geopolítica ultrapassada'

Para Magalhães, da PUC-SP, as posições culpando a Otan e os EUA representam um equívoco de parte da esquerda.

"Em nome da luta contra os Estados Unidos, contra o imperialismo, a esquerda acaba indiretamente apoiando um regime que é ultra conservador", avalia o pesquisador, referindo-se ao governo de Vladimir Putin.

O sociólogo Celso Rocha de Barros, colunista da Folha de S. Paulo e estudioso da esquerda, tem avaliação similar.

"Muita gente [da esquerda] ainda está presa numa visão de geopolítica que está ultrapassada", avalia Barros.

"Não é exatamente a visão da Guerra Fria, mas a dos anos 1990, quando basicamente os Estados Unidos eram a única potência mundial, a 'polícia do mundo'. Nesse momento, criou-se a ideia de que a estratégia fundamental anti-imperialista deveria se opor aos Estados Unidos, o que naturalmente era fácil para muita gente, pois eles já se opunham desde a Guerra Fria, por apoiar a União Soviética", observa.

Mas, segundo o sociólogo, essa análise atualmente não faz mais sentido. "O mundo não tem mais um único imperialismo, outras potências também fazem isso. Então a leitura da agressão à Ucrânia como um ato anti-imperialista eu acho ridícula, sinceramente", critica.

Barros avalia que o episódio da nota da bancada do PT no Senado, posteriormente apagada, se assemelha a outro episódio recente envolvendo o partido. Ele se refere a quando uma nota saudando a vitória de Daniel Ortega na Nicarágua, após 14 anos do mandatário de esquerda no poder e em eleições sem a participação de opositores, também foi desautorizada pelo partido e apagada.

O sociólogo avalia que ambos os casos revelam uma desorganização interna do PT e que acabam alienando parte do eleitorado mais de centro.

"Política externa não muda eleição, nem no Brasil, nem em nenhum lugar do mundo — a não ser nos Estados Unidos, que têm guerra e o cara pode ser convocado", observa o analista.

"No entanto, no Brasil, as posições do PT [com relação à política externa] são vistas como uma espécie de sinalização do que seria a política do partido no governo. Então, boa parte dos críticos não se interessa muito pela sorte da Nicarágua, mas se o PT apoia o Ortega, o pessoal entende que o PT está radicalizando e, como governo aqui no Brasil, vai radicalizar", explica.

"Então o PT deveria tomar especial cuidado, porque não adianta botar o Alckmin como vice e ficar fazendo juras de amor ao Maduro. Não funciona", afirma Barros, citando o ex-governador de São Paulo pelo PSDB, Geraldo Alckmin, e o atual presidente da Venezuela, Nicolás Maduro.

'Até explicar que focinho de porco não é tomada vai tempo'

Claudio Couto, cientista político e professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), vê sentido nas notas da esquerda culpando a Otan e os Estados Unidos pela crise na Ucrânia.

"Essa atitude de uma certa prepotência da Otan em relação à Rússia acabou produzindo esse resultado [a invasão à Ucrânia}, embora é claro que só produziu esse resultado porque é o Putin que está ali e ele é belicoso, e a Rússia é o país que é, com a sua história", diz Couto.

"Mas, de qualquer maneira, se não tivesse essa tentativa de expansão da Otan até a fronteira russa, acredito que provavelmente isso [a guerra na Ucrânia] não teria acontecido. Então, analiticamente faz sentido observar isso", diz o professor da FGV, justificando o ponto de vista de parte da esquerda.

Ele concorda com Magalhães e Barros, porém, na avaliação de que a nota da bancada do PT no Senado foi uma atitude desastrada.

"Pode alienar alguns eleitores de centro que já olham [o PT] com uma certa desconfiança, certamente. Quando sai uma nota dessas até você explicar que focinho de porco não é tomada vai um longo tempo e claro que atrapalha", diz Couto.

"Foi uma ideia de jumento postar essa nota, num momento em que o Lula está com toda essa preocupação de construir uma ponte com os setores moderados para mostrar que irá dialogar. É um sectarismo radical que funciona um pouco com a cabeça do movimento estudantil, de afirmação de princípio, de uma lógica muito mais militante do que propriamente política."


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