Israel passa por seu pior momento desde que a pandemia de covid-19 começou: com o avanço da variante ômicron, o país chegou a ter mais de 100 mil novos casos e 90 mortes registradas num único dia, entre o final de janeiro e o início de fevereiro deste ano.
Nas ondas anteriores, os números mais elevados tinham sido de 11 mil novas infecções (em setembro de 2021) e 64 mortes (em janeiro de 2021) em 24 horas. Os dados são do Our World In Data, site que compila estatísticas sobre a pandemia.
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Mas o que explica esse cenário na nação que teve uma das campanhas de vacinação contra a covid-19 pioneiras e mais bem-sucedidas?
Para a médica brasileira Julie Schleifer, que atua na linha de frente em Israel desde o início da pandemia, a atual situação do país pode ser explicada por uma série de fatores, a começar pela parcela da população que ainda não completou o esquema vacinal — dos pouco mais de 9,2 milhões de cidadãos israelenses, 5,1 milhões tomaram as três doses.
"Pelo que observamos na prática e nos dados oficiais, a grande maioria dos pacientes graves não estão vacinados", relata.
Em conversa com a BBC News Brasil, Schleifer relata sua experiência ao longo desses últimos dois anos e lista os aprendizados obtidos durante a pandemia.
Experiência inesperada
A médica brasileira, de 41 anos, conta que teve contato com um paciente que estava com covid logo no início da pandemia, lá em março de 2020.
"Com isso, precisei ficar em isolamento imediatamente, pois nem existiam muitos exames à disposição", diz.
"Como tinha acesso a um computador no meu quarto, uma das diretoras do local onde trabalho pediu que eu fizesse o monitoramento remoto das pessoas com covid, que à época eram isoladas em hotéis. Imagina, naquele início víamos 150 pacientes e achávamos um absurdo", lembra.
Schleifer trabalha para a Clalit Health Services, um dos quatro "planos de saúde" disponíveis em Israel. No país, todos os cidadãos são obrigados a ter um seguro médico.
A Clalit atende cerca de 4,5 milhões de pessoas, praticamente metade da população israelense, informa a especialista.
"Essa primeira tarefa, de entrar em contato com os pacientes, fez com que eu desenvolvesse uma experiência com a covid que poucos profissionais tinham naquele momento", relata.
Com isso, a brasileira virou uma das diretoras da resposta à pandemia da empresa. Ela supervisiona a porção norte de Israel, uma das oito zonas em que os serviços de saúde são divididos no país.
Ela e sua equipe acompanham cerca de 800 mil indivíduos, numa faixa territorial que abrange a cidade de Tel Aviv e chega até as cercanias de Haifa.
"Nós fazemos ligações telefônicas, conferimos as informações dos pacientes com covid, vemos se eles precisam de algum antiviral, se podem receber alta…", exemplifica.
Um tsunami causado pela ômicron
Para Schleifer, os últimos dois anos comprovaram que a covid pode sempre surpreender.
"Parece que o coronavírus traz uma nova surpresa. A cada onda, descobrimos algo novo, que não tínhamos visto até então", destaca.
A exemplo do que ocorre em várias partes do planeta, Israel também foi afetado pela variante ômicron. Os números de casos, hospitalizações e óbitos registrados recentemente ultrapassam, de longe, o que ocorreu em outros períodos de crise por lá, especialmente nos meses de setembro de 2020 e janeiro de 2021.
"Quando surgiram as primeiras notícias da ômicron e se especulava sobre a possibilidade de termos 80 mil infectados por dia, pensávamos que era impossível atingir um número tão alto", conta a médica.
"Pois passamos dos 100 mil novos casos diários no final de janeiro."
"E devemos considerar que Israel é um país relativamente pequeno. Portanto, ter mais de 70 mil diagnósticos diários representa um desafio para o sistema de saúde, mesmo que uma proporção menor dos pacientes tenha complicações", complementa.
A partir de fevereiro, os registros de novas infecções voltaram a cair — no dia 2/2, foram feitos 62 mil diagnósticos de covid em Israel.
O mesmo efeito, porém, ainda não foi observado nas mortes pela doença, que continuam a subir, ainda que a taxa de óbitos em relação ao número de novos casos seja proporcionalmente menor do que ocorreu nas ondas anteriores.
Israel, inclusive, chegou a figurar entre os países com a maior mortalidade por milhão de habitantes nessas primeiras semanas de 2022.
"Sabemos que há um descompasso de alguns dias nas curvas de casos e mortes. Esperamos, portanto, que os óbitos comecem a diminuir em breve", analisa a especialista.
O poderio das vacinas
Schleifer aponta que o estrago só não foi maior graças à vacinação contra a covid. E isso fica claro quando ela cita os dados oficiais do Ministério da Saúde de Israel.
"Em pessoas com mais de 60 anos, temos 375 pacientes graves que não se vacinaram a cada 100 mil habitantes. Entre os vacinados, esse número cai para 31 pacientes por 100 mil", calcula a médica.
Ou seja: na população mais velha de Israel, o risco de complicações pela covid é 12 vezes mais alto entre quem não tomou as três doses do imunizante.
"Já naqueles com menos de 60 anos, essa taxa fica em 5 pacientes por 100 mil entre não vacinados e 1,5 entre os vacinados", completa.
Embora Israel tenha sido pioneiro na distribuição e na aplicação dos imunizantes contra a covid, e inclusive liderou as discussões sobre a necessidade de uma terceira dose, os números de novos vacinados cresceram mais lentamente no segundo semestre de 2021 e no início de 2022.
Para ter ideia, 62% dos israelenses tinham recebido ao menos uma dose em julho do ano passado. Agora em fevereiro, esse índice está em 72%.
A médica brasileira avalia que o país deveria ter feito campanhas de comunicação mais direcionadas e adaptadas a algumas parcelas da população.
"Nós vemos que algumas pessoas são mais resistentes às vacinas e outras camadas tiveram uma alta taxa de contaminação logo no início da pandemia, como os judeus ultraortodoxos", cita.
"Outro dia estava conversando com um médico árabe e ele me relatou que, dentro da comunidade, existe uma hierarquia familiar que respeita muito a decisão de avôs e avós. Portanto, se os mais velhos resolvem não se vacinar, ninguém abaixo deles naquela família vai tomar as doses", continua.
"Seria interessante ter campanhas mais dirigidas, para tirar as dúvidas que cada um desses grupos apresenta", sugere.
Perspectivas e aprendizados
A médica brasileira conta que as demais medidas restritivas, como a proibição de aglomerações e o uso de máscaras, estão em discussão atualmente em Israel.
"Temos o green pass, que é válido para quem tomou a terceira dose ou teve covid e se recuperou. Esse documento é exigido para entrar em muitos lugares, como restaurantes e shoppings. Também se recomenda o uso de máscaras em locais fechados", conta.
"Mas agora, com tanta gente infectada pela segunda vez, o green pass parece perder um pouco de sentido, mas ainda não há uma decisão se ele será mantido ou abandonado."
Schleifer vê outra mudança significativa que começou a acontecer recentemente: muitos pacientes com covid que antes precisavam ficar em hospitais agora são tratados em casa, com monitoramento à distância.
"O sistema de saúde de Israel conseguiu se estruturar para deixar o paciente em sua comunidade. Ele fica internado em casa, mas sob os cuidados de médicos e enfermeiras, que fazem o acompanhamento pela internet", detalha.
"Isso foi uma solução para não sobrecarregar ainda mais os hospitais."
Com tantas alterações no conhecimento sobre a doença e nas formas de prevenção e tratamento, a médica brasileira torce para que a evolução natural do vírus faça com que ele fique menos perigoso num futuro próximo.
"Espero que a gente não seja surpreendido com uma nova variante do coronavírus ainda mais perigosa e contagiosa", conta.
"Mas essa pandemia nos mostrou que precisamos ser flexíveis e dinâmicos, especialmente quando o assunto é saúde e educação. Pode ser necessário mudar os planos, adaptar e criar novas condições de acordo com a realidade."
"A covid nos pregou um baita susto e espero que a gente aprenda com todos os erros para estarmos melhor preparados para a próxima crise de saúde que aparecer", finaliza.
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