A expressão "ritmo chinês de crescimento", bastante usada até meados dos anos 2010 para adjetivar as economias que se expandiam de forma acelerada, não surgiu à toa.
O Produto Interno Bruto (PIB) da China vem aumentando de forma ininterrupta há mais de 40 anos. Nas duas décadas entre 1991 e 2010, o país conseguiu manter um crescimento médio de 10% ao ano, maior do que qualquer outro país no mesmo período.
Desde então, em parte devido a mudanças estruturais, a economia chinesa perdia fôlego. Veio o coronavírus e, depois dos anos atípicos de 2020 e 2021, quando a pandemia primeiro puxou o PIB para baixo (2,2%) e a retomada lhe deu fôlego extra (8,1%), o mundo olha atento para a economia chinesa em 2022.
Isso porque as projeções indicam uma desaceleração com um crescimento em torno de 5% - menor número desde 1990, se descontado 2020.
O desempenho é resultado de uma combinação de fatores de curto e longo prazo, conforme os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Uma mistura que inclui desde mudanças profundas no modelo de crescimento chinês, que dá sinais de que está entrando em um novo ciclo, até episódios recentes e mais pontuais, como a política de covid zero.
Sintetizamos esses elementos em três pontos, listados a seguir.
1. A crise na construção: imóveis caros, cidades fantasmas e empresas endividadas
O setor imobiliário e de construção vem sendo o principal motor do crescimento espetacular da economia chinesa há décadas. Responde por cerca de 15% do PIB e por quase o dobro disso se contabilizada toda a cadeia, que inclui segmentos como o de aço, cimento e de mobiliário.
Há alguns anos, contudo, o setor vem dando sinais de esgotamento. Alguns deles bastante claros, como as "cidades-fantasma" que se espalharam pelo país nos últimos anos: grandes empreendimentos que, devido à baixa demanda, permanecem vazios ou inacabados.
Além disso, mesmo com a ampla oferta, os preços têm se curvado à especulação imobiliária e seguem em uma crescente, deixando a casa própria cada vez menos acessível para muitos chineses.
Entre as 10 cidades com os maiores preços médios de imóveis no mundo, 3 estão na China, conforme a pesquisa anual feita pela consultoria americana CBRE, especializada no setor imobiliário. São elas Xangai, Pequim e Shenzhen, hoje um grande hub de tecnologia.
"O processo de urbanização, que foi um dos grandes motores desse boom na construção que se estendeu pelos últimos 25 anos, desacelerou consideravelmente", pontua Mark Williams, economista-chefe para a Ásia da consultoria britânica Capital Economics.
"As taxas de natalidade vêm despencando, reduzindo a expectativa de demanda no mercado imobiliário no futuro. E essa não é uma história só para 2022, é uma história para os anos 2020 e além", completa.
Outro sinal de alerta vem das próprias empresas de construção.
Após anos crescendo de forma agressiva com um modelo baseado no endividamento, algumas companhias começaram a enfrentar dificuldade para pagar os credores e chegaram a ameaçar dar calote - incluindo a gigante Evergrande, que no ano passado levantou temores de que uma crise maior pudesse estar se desenhando.
Um relatório divulgado em outubro pela agência de rating S&P apontou que, no cenário mais pessimista, até 37% das companhias do setor poderiam enfrentar problemas de liquidez (ou seja, dificuldade para pagar dívidas) em 2022.
"A probabilidade é que a necessidade de imóveis novos caia consideravelmente na China até o fim da década, o que coloca em questão todo o modelo de negócio dessas empreiteiras, que ficam pegando dinheiro emprestado para construir mais e mais a cada ano que passa", ressalta Williams.
O governo, que há anos reconhece que há profundos desequilíbrios do setor, vem tentando consertá-los de forma mais ativa só recentemente. Desde 2020, por exemplo, tem implementado uma série de controles regulatórios, batizados de "três linhas vermelhas", para tentar conter o endividamento desordenado.
Essas medidas são apontadas como uma das razões por trás das dificuldades que algumas empresas têm atravessado.
Nesse sentido, diz Williams, parte da crise atual é "contratada", ou seja, o próprio governo sabia que as medidas levariam a uma desaceleração do principal dínamo da economia - mas não teve muita alternativa diante da realidade, que, na avaliação do economista, acabou se impondo.
"Parte das chamadas crises ou de alguma instabilidade que se criou na economia chinesa ano passado foram na verdade induzidas por políticas", concorda em parte a diplomata Tatiana Rosito, que vive em Xangai e é senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).
Em sua visão, as razões que levaram o presidente Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês ao aperto regulatório justamente neste momento, quando há muito tempo o governo admite a necessidade de reformar a economia, é um campo aberto a especulações.
A movimentação, contudo, sinaliza uma mudança importante: uma disposição mais clara da liderança chinesa de persistir no combate aos desequilíbrios, tendo como efeito colateral a produção de taxas de crescimento menores.
"Há uma passagem de um foco em quantidade para um foco em qualidade, para uma economia baseada em inovação. E, nesse sentido, eles estão em busca dos novos drivers [impulsionadores] de desenvolvimento", acrescenta a economista, que já foi representante-chefe da Petrobras na China.
2. A 'repressão' à indústria de tecnologia
Um desses motores é o setor de tecnologia, que, ironicamente, também está na mira do cerco regulatório empreendido pelo governo.
Os novos controles, que se manifestam em áreas desde a cibersegurança até a legislação anti-monopólios, têm feito o setor perder o fôlego que transformou algumas empresas em impérios nos últimos anos.
Alvo das medidas, grandes multinacionais como Tencent, DiDi (dona da 99 no Brasil) e Alibaba têm registrado crescimento menor e até queda nas receitas nos trimestres mais recentes.
Apesar de se identificar como um país comunista desde 1949, quando uma revolução alçou Mao Tsé-Tung ao poder, a China passou a abrir espaço para empresas privadas, ainda que sob restrições, com a política de "reforma e reabertura" inaugurada por Deng Xiaoping no fim dos anos 1970.
Por que então impor restrições mais rigorosas neste momento?
Na avaliação de Evandro Menezes de Carvalho, coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Direito Rio, a explicação combina objetivos políticos e econômicos.
"O 'combate' às grandes fortunas ou às grandes empresas seria uma forma de o partido transmitir à população que está comprometido com a promessa de combate à desigualdade, dentro do discurso de 'prosperidade comum'", diz ele, referindo-se ao slogan que tem aparecido com frequência nos últimos discursos do presidente Xi Jinping.
Também seria uma forma de evitar que as grandes fortunas "corrompam" o próprio sistema e coloquem sob ameaça o monopólio do poder exercido pelo Partido Comunista. E, por fim, uma maneira de reorientar o foco dessa indústria para as áreas que o governo considera estratégicas e importantes. Menos redes sociais e joguinhos e mais chips e semicondutores, por exemplo.
Rosito acrescenta outros três pontos à lista, entre eles o próprio esforço do governo para combater o que enxerga como desequilíbrios da economia. No caso específico do setor de tecnologia, muitas das empresas vinham entrando maciçamente no ramo financeiro e aumentando de forma expressiva o nível de endividamento, por exemplo.
Em paralelo, ela cita a visão por parte das lideranças chinesas da necessidade de se regulamentar uma área considerada sensível e estratégica: "A China hoje vê claramente a questão dos dados como uma questão de segurança nacional".
E, finalmente, as transformações no cenário de segurança internacional, decorrentes de embates como a guerra comercial entre China e Estados Unidos.
"Quando eles criaram esse slogan da 'circulação dual' [mencionado desde 2020 como uma nova estratégia, que incorpora cada vez mais o consumo doméstico], é pra dizer também: 'Olha, a gente precisa pensar nas cadeias domésticas, na circulação, até para fazer face a restrições", diz a diplomata.
Entre essas "restrições" estariam, por exemplo, as investidas americanas para limitar o acesso chinês a algumas tecnologias fundamentais, como semicondutores.
Williams, da Capital Economics, também chama atenção para o peso do cenário internacional menos favorável, que teria despertado no partido uma espécie de senso de urgência para que o país se prepare para tempos mais difíceis.
"E isso significa que a China precisaria focar mais seus esforços econômicos em áreas como a indústria, na produção de chips de alta tecnologia, e não tanto em algoritmos para compartilhar vídeos engraçados", avalia.
"Acho que existe um certo grau de desconfiança em relação a esse tipo de tecnologia, [uma visão de que seria] algo que não necessariamente fortaleceria a China no longo prazo", completa o economista.
3. Política de covid zero
Em meio a todas essas mudanças estruturais e de longo prazo, um outro fator, este aparentemente mais circunstancial, também tem contribuído para desacelerar o crescimento chinês: a política de covid zero em vigor.
Enquanto alguns países têm sinalizado que, quando for possível, devem mudar suas estratégias de saúde pública para que possam passar a conviver com o vírus, na China a orientação ainda é tentar mantê-lo fora do território a todo custo.
Isso se traduz, por exemplo, na implementação de rigorosos e amplos lockdowns para tentar conter novos surtos, controle de fronteiras e políticas minuciosas de testagem - medidas que têm impacto tanto na demanda de consumidores quanto na produção das empresas.
Em janeiro, por exemplo, a montadora japonesa Toyota informou ter precisado suspender a produção em sua joint-venture em Tianjin por conta das novas rodadas de testagem que estavam sendo realizadas nos 14 milhões de habitantes da cidade para tentar conter a disseminação da variante ômicron.
Alguns se questionam até que ponto a estratégia chinesa é sustentável, diante da alta transmissibilidade da ômicron. Até o momento, contudo, o governo não sinalizou uma mudança significativa no combate à pandemia.
O custo econômico da política de tolerância zero à covid levou instituições como o banco Goldman Sachs a reduzir sua projeção para o crescimento da economia chinesa em 2022 de 4,8% para 4,3% recentemente.
Evandro Menezes de Carvalho, da FGV Direito Rio, chama atenção para o fato de que a abordagem chinesa, que de certa forma deixa o país mais fechado para o mundo, converge com alguns dos interesses das lideranças. Entre eles, a própria estratégia de "circulação dual", que passa a olhar cada vez mais para o mercado doméstico, e a visão de que o país precisa se preparar para cenários mais críticos com relação aos Estados Unidos, por exemplo.
"Talvez haja uma política de conveniência", ele avalia.
Na visão do especialista, contudo, "não há interesse em um fechamento total". "Existe uma preocupação de continuar atraindo investimento estrangeiro e manter as portas abertas para o mercado internacional."
Como tudo isso pode impactar o Brasil?
O diplomata Marcos Caramuru, embaixador do Brasil na China entre 2016 e 2018, lembra que 2022 é um ano sensível para o país asiático também no campo político.
No segundo semestre ocorre o 20º Congresso do Partido Comunista Chinês, o evento político mais importante do calendário. Realizado a cada 5 anos, é geralmente o momento em que se formalizam as trocas de lideranças. Neste ano especificamente, Xi Jinping também deve buscar um inédito terceiro mandato como presidente.
"A questão que todo mundo se pergunta é qual vai ser o equilíbrio entre reformas e crescimento", ele acrescenta.
A depender da calibragem, a economia brasileira pode sentir mais ou menos os efeitos, avalia Caramuru. A China é hoje o principal parceiro comercial do Brasil, destino de 31,3% de todas as exportações do país. A pauta é bastante concentrada em commodities, especialmente soja, petróleo e minério de ferro - um item que seria diretamente impactado pela crise na construção e no mercado imobiliário, por exemplo.
"Se houver uma desaceleração forte na China, nós vamos sofrer - alguns produtos mais que outros. Mas tudo leva a crer que o governo vai tentar encontrar um equilíbrio. Não vejo um cenário que, para nós, possa subitamente criar uma situação de constrangimento pesado", pontua.
Tatiana Rosito também não enxerga um choque negativo de grandes proporções no curto prazo. Ela aponta, contudo, que há riscos relevantes para o médio e longo prazo, parte deles decorrente da própria concentração da pauta de exportações brasileira.
Se o perfil da economia da China de fato mudar e ela deixar de ser um grande centro manufatureiro (a "fábrica do mundo") para se tornar uma economia baseada em inovação, o que isso significa para os países que abasteceram os chineses de commodities nas últimas duas décadas?
"A China de alguma forma moldou o mundo dos últimos 20 anos, através da sua enorme demanda por commodities, que beneficiou muitos países, através da sua produção de bens, que permitiu que o mundo crescesse sem inflação, através do seu papel importante como hub de cadeias produtivas, sobretudo no setor eletroeletrônico… Da mesma forma que ela, em conjunto com os Estados Unidos, moldou bastante o mundo nos últimos 20 anos, isso pode continuar e até se intensificar - agora sob novas bases", avalia a economista.
"A China está olhando cada vez mais para fontes renováveis - e menos para petróleo e gás -, mais para veículos elétricos, para hidrogênio…", completa.
Nesse sentido, ela acredita que o Brasil precise de uma estratégia, construída "a várias mãos" pelo governo com a sociedade civil, para fazer frente a essas transformações e conseguir extrair os benefícios possíveis para a economia brasileira.
Uma possibilidade seria procurar exportar produtos de maior valor agregado dentro do próprio segmento alimentício - em vez de embarcar apenas a soja e o milho que vão virar carne na China, vender produtos que possam ir direto para as gôndolas dos supermercados.
"Os consumidores chineses não se lembram do Brasil como um grande fornecedor agrícola. Como nós vendemos commodities, a média das pessoas não reconhece marcas brasileiras, né? Então eu acho que a gente precisa olhar para esse potencial da China, um país em que a classe média deve dobrar de tamanho até 2035, de 400 milhões para 800 milhões de pessoas."
No próximo dia 15 de fevereiro, a especialista apresenta algumas de suas ideias em um evento da universidade britânica King's College intitulado Brazil-China trade: In search of a strategy ("Comércio Brasil-China: Em busca de uma estratégia", em tradução literal).