NEGÓCIOS DE INVERNO NA CHINA

A virada de ano para o calendário agrícola chinês ocorreu em 1º de fevereiro. A data, que passa batido por aqui, é uma das mais celebradas do ano em boa parte do leste e sudeste asiáticos. Este é o ano do tigre iniciado no mês do tigre.

E, em meio às celebrações, começaram, em Pequim, os Jogos Olímpicos de Inverno, evento esportivo que é o favorito entre as partes mais nevadas do mundo. Bobsled, Curling, Luge, Skeleton, modalidades presentes nos jogos, são populares na Noruega e no Canadá, onde as crianças crescem brincando na neve.

É a segunda vez em menos de 15 anos que Pequim sedia jogos olímpicos. Um feito e tanto, carregado de simbolismos. Em 2008, sediou os jogos de verão e, agora, os de inverno, tornando-se a primeira cidade do mundo a ter sediado ambas as competições. Para além da logística, as autoridades procuraram acentuar a força da capital, ao promovê-la como sede de um evento que não é possível acontecer totalmente numa cidade tão plana. Esquiar mesmo, em montanha, acontece a uns 100 quilômetros ao norte, por volta de onde passa a Grande Muralha.

É um lugar lindo, onde os chineses construíram resorts que funcionam à base de neve artificial. Isso porque, apesar dos invernos serem rigorosos em Pequim — e de se sentir mais frio ali do que nos Alpes e no Colorado, onde estão as estações de esqui mais badaladas do mundo —, nevar mesmo não é garantido.

Mas a China encontrou a fórmula para fazer acontecer. Se há empreendimento, existe financiamento. Aprendeu com a mentalidade dos países da OCDE de que as coisas têm menos mistério do que parece. São interesses pragmáticos de grupos mundiais poderosos que conduzem a abertura e o fechamento de oportunidades. O Partido Comunista Chinês extrai toda sua legitimidade da competência com que negocia e conduz o enriquecimento dos chineses. Organizar eventos como as olimpíadas serve para demonstração interna de competência e ajuda a colocar um monte de projetos para rodar. Tem pressa e faz isso com mil e uma frentes de trabalho, porque, afinal, precisa melhorar as condições de 1,4 bilhão de pessoas.

Hoje, a posição de superpotência da China já está tão naturalizada que, às vezes, nos esquecemos de que, nas Olimpíadas de 2008, o governo buscava demonstrar aos chineses que o bem-estar material e a posição do país no mundo estavam melhorando a passos largos. Em termos de PIB per capita, a China só ficou mais rica do que o Brasil de 2018 para cá. E a discrepância na paridade do poder de compra não é gigantesca, de cerca de US$ 2,5 mil por pessoa.

A diferença é que eles passaram correndo pela gente em 2018 e seguem em disparada, com um modelo de desenvolvimento que tem coerência interna e posição bem ajustada no mundo. As polêmicas com os EUA até oferecem sustentação para o argumento de Xi Jinping de que o partido precisa fechar com ele para um terceiro mandato. A ausência de líderes europeus e norte-americanos em Pequim é um boicote tolo e errado, pois não muda o cálculo chinês e ainda reforça o diagnóstico sobre os benefícios de uma parceria preferencial com Moscou. A diplomacia segue falhando no mundo.

Com os esportes de inverno, mais do que ganhar medalhas, buscam mesmo fomentar uma nova indústria de lazer para servir sua classe média emergente. Os chineses são ótimos nos esportes de precisão, mas há uma percepção de que é preciso priorizar outras funções sociais e econômicas do esporte que não apenas a competitividade.

Isso vem com outras mudanças no planejamento social. A China já provou que sua sociedade pode produzir medalhas de ouro em educação, esportes e outras competições. O governo deseja mudar o foco para uma vida em que o lúdico tire um pouco da obsessão com o resultado objetivo. Em 2016, abandonaram a política do filho único, autorizando dois e, já em 2021, passaram para três. Agora, o governo decidiu regular até o dever de casa, limitando o tempo que a criança passa estudando fora da escola. Sendo assim, a promoção dos Jogos Olímpicos de Inverno entrou na estratégia de se usar mais esportes também para lazer. E, claro, para girar a economia e mostrar a competência da autoridade central.

Apesar do calendário gregoriano que adotamos ser usado na China desde o início do século 20, seu velho calendário agrícola é mantido para celebrações culturais. O gregoriano ajuda a assimilar o mundo e é onde estão marcadas as datas cívicas que celebram o papel modernizador do Estado. Mas as celebrações culturais voltam a ganhar espaço nessa China burguesa ainda cheia de trabalhadores para melhor incluir. E esquiando, busca-se preencher com alguma alma os vazios da eficiência. Seguem abertos os vazios da diplomacia pouco criativa e pouco pacifista.

PAULO DELGADO, sociólogo