Desde o dia 24 de fevereiro a comunidade internacional assiste com perplexidade a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Como outras nações vizinhas, os dois países têm tanto laços históricos e culturais que as unem quanto que as separam.
Essa herança em comum remonta ao século 9º, quando Kiev, a atual capital ucraniana, era centro do primeiro Estado eslavo, criado por um povo que se autodenominava como "rus".
Foi esse grande Estado medieval, que os historiadores chamam de Rus de Kiev, que deu origem à Ucrânia e à Rússia - cuja capital atual, Moscou, surgiu no século 12.
A fé professada era a cristã ortodoxa, instituída em 988 por Vladimir 1º de Kiev (ou São Vladimir Svyatoslavich "O Grande"), que consolidou o reino Rus no território que corresponde hoje a Belarus, Rússia e Ucrânia e se estende até o Mar Báltico.
Entre um grande número de dialetos eslavos na região, as línguas ucraniana, bielorrussa e russa acabaram se desenvolvendo.
É por causa desse passado compartilhado que o presidente russo, Vladimir Putin, afirma que "russos e ucranianos são um povo, um único todo".
Especialistas apontam, entretanto, que, apesar da origem comum, a trajetória dos ucranianos tomou caminhos diferentes da dos russos pelo menos nos últimos nove séculos, quando estiveram sob domínio de diferentes povos.
Para Andrew Wilson, professor de estudos ucranianos da Universidade College London, é importante ver a Ucrânia, tanto seu território quanto sua identidade, mais como um "quebra-cabeças dinâmico" do que como uma unidade estanque.
O quebra-cabeças
Em meados do século 13, a federação de principados de Rus foi conquistada pelo Império Mongol.
Na sequência, no final do século 14, o território acabou dividido entre o Grão-Principado de Moscou e o Grão-Ducado da Lituânia (que mais tarde se juntou à Polônia), que se aproveitaram do declínio do poder mongol para avançarem sobre a região.
Kiev e as áreas adjacentes ficaram sob o domínio da Comunidade Polaco-Lituana - o que deixou a região oeste da Ucrânia mais exposta a influências ocidentais nos séculos seguintes, desde a contrarreforma (a reposta da igreja Católica à reforma protestante) até o renascimento (movimento artístico e cultural inspirado na antiguidade clássica, que rompia com os valores da Idade Média).
A chamada Galícia dos Cárpatos, também no oeste da Ucrânia, chegou a ser governada por um longo período pela dinastia dos Habsburgo, conhecida por estar à frente dos impérios Austríaco e Austro-Húngaro.
Assim, essa porção ocidental do país teve uma história completamente diferente daquela vivida no leste ucraniano, disse Geoffrey Hosking, um dos principais historiadores especializados em Rússia, ao BBC HistoryExtra.
Muitos de seus habitantes não são católicos ortodoxos, pertencendo à igreja Uniata ou às igrejas Orientais Católicas, que realizam seus ritos em ucraniano e reconhecem o Papa como chefe espiritual.
Outra parte da Ucrânia de hoje com um passado bastante particular é a Crimeia, com seus laços com gregos e tártaros e períodos sob o domínio otomano e russo.
Dois lados
No século 17, uma guerra entre a Comunidade Polaco-Lituana e o czarismo da Rússia colocou as terras a leste do rio Dnieper, região era conhecida como "margem esquerda" da Ucrânia, sob o controle da Rússia Imperial.
Décadas depois, já em 1764, a imperatriz russa Catarina, a Grande, desarticulou o Estado cossaco ucraniano que dominava as regiões central e noroeste do território e passou a avançar sobre terras ucranianos até então dominadas pela Polônia.
Durante os anos que se seguiram, uma política conhecida como russificação proibiu o uso e o estudo da língua ucraniana. As populações locais foram pressionadas a se converter à fé ortodoxa russa, para que pudessem constituir mais uma das "pequenas tribos" do grande povo russo.
Em paralelo, o nacionalismo se intensificou nas terras mais ocidentais, que passaram da Polônia para o Império Austríaco, onde muitos começaram a se chamar de "ucranianos" para se diferenciar dos russos.
Com o século 20, veio a Revolução Russa e a criação da União Soviética, que fez seu próprio rearranjo do quebra-cabeças ucraniano.
Dominação soviética
A parte ocidental da Ucrânia foi tomada da Polônia pelo líder soviético Joseph Stalin no final da Segunda Guerra Mundial, quando foi constituída a República Socialista Soviética da Ucrânia.
Sob o manto comum soviético, na década de 1950 Moscou atendeu a uma demanda antiga da república ucraniana e transferiu a península da Crimeia para o país.
Localizada no Mar Negro, no sul, a região também tem laços fortes com a Rússia, que mantém até hoje uma base naval na cidade de Sebastopol. A Crimeia voltou para controle russo em 2014, quando a Rússia de Putin a invadiu e anexou.
Durante o período de dominação soviética, a tentativa de submeter a Ucrânia à influência russa se intensificou, muitas vezes a um custo humano elevado.
Milhões de ucranianos que já faziam parte da União Soviética na década de 1930 morreram em uma grande fome - que ficou conhecida como Holodomor - promovida por Stalin como estratégia para forçar os camponeses a se unirem à política comunista de fazendas coletivas.
Stalin chegou a enviar um grande número de cidadãos soviéticos, muitos sem conhecimento do idioma ucraniano e com poucos laços com a região, para tentar repovoar o leste do país.
Mesmo assim, a Moscou soviética nunca dominou culturalmente a Ucrânia.
Decisões econômicas, políticas e militares foram impostas a partir do centro, afirma Hosking, mas a Ucrânia "tinha certa autonomia" nas áreas de cultura e educação.
Embora o russo fosse a língua dominante, as crianças aprendiam ucraniano no ensino primário, muitos livros eram publicados no idioma local e, na segunda metade do século 20, "um forte movimento nacionalista ucraniano protagonizado por pessoas que tiveram uma educação ucraniana" cresceu na União Soviética.
Divisões profundas
Em 1991, a União Soviética entrou em colapso e, em 1997, um tratado entre Rússia e Ucrânia estabeleceu a integridade das fronteiras ucranianas.
Os diferentes legados que caracterizam as regiões do país deixaram, contudo, divisões que muitas vezes parecem abismos.
As regiões de cada um dos lados do rio Dnieper têm contrastes profundos, marcados pela extensão do domínio russo.
A leste, os laços com Moscou são mais fortes, e a população tende mais a seguir a religião ortodoxa e a falar o idioma russo.
Na parte ocidental, os séculos sob o domínio de potências europeias, como a Polônia e o Império Austro-Húngaro, acabam contribuindo para que muitos de seus habitantes fossem católicos e que preferissem falar a língua local.
Cada lado com seus próprios interesses: alguns anseiam por retornar ao que consideram sua pátria-mãe, enquanto outros anseiam por trilhar caminhos independentes.
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