Nos últimos dias, a turbulenta relação entre Rússia e Estados Unidos envolveu um terceiro ator: a América Latina.
A aproximação entre o presidente russo, Vladimir Putin, e a região ficou clara neste mês de fevereiro com a visita a Moscou dos presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro, e da Argentina, Alberto Fernández.
Enquanto Bolsonaro definiu a relação do Brasil com a Rússia como "mais que um casamento perfeito", Fernández disse a Putin que a Argentina "deve ser a porta de entrada da Rússia na América Latina".
Políticos com perfis diferentes, Bolsonaro e Fernández sinalizaram que o "sentimento" é correspondido.
"É mais que um casamento perfeito que eu levo para o Brasil. E senti também, pela fisionomia, pelo que foi tratado até fora da agenda oficial, com autoridades russas, em especial com o presidente Putin, que é esse o sentimento que ele tem também", disse Bolsonaro.
Até recentemente, a relação do Kremlin com a América Latina estava centrada em países liderados por políticos rejeitados pela Casa Branca: Venezuela, Nicarágua e Cuba, além de uma aproximação crescente com a Bolívia.
Nesta semana, em meio à tensão entre a Rússia e a Ucrânia, que é acompanhada mundialmente e especialmente pelos Estados Unidos, o vice-primeiro-ministro da Rússia, Yuri Borisov, visitou Cuba e a Venezuela.
Putin ligou pessoalmente para os colegas cubano, venezuelano e nicaraguense — com este último, não falava por telefone desde 2014.
O presidente Nicolás Maduro ratificou que o sentimento é correspondido. "A Rússia conta com todo o apoio da Venezuela para dissipar as ameaças da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar ocidental) e de todos esses países para que siga sendo um território de paz", disse.
A relação dos russos com os venezuelanos envolve o petróleo e a mineração venezuelana, além da venda de armas russas para a Venezuela. A estatal PDVSA, que é um pilar fundamental para os planos políticos venezuelanos, mudou, recentemente, sua sede de Lisboa para Moscou, como informaram as agências internacionais de notícias.
No caso dos cubanos, que foram tão dependentes dos recursos da ex-União Soviética e sentem até hoje a falta daquele respaldo financeiro, a aproximação tem várias motivações.
Segundo o jornal oficial Granma, Cuba e Rússia mantêm "diálogo político no mais alto nível", através de "um fluido intercâmbio de visitas", com aprofundamento dessa relação durante a pandemia.
Como ocorreu com Argentina, Bolívia e Paraguai, o governo Putin enviou carregamentos da vacina Sputnik V para Cuba — o imunizante foi o primeiro a chegar nestes países.
Ainda segundo a publicação, há uma embarcação prestes a zarpar para a ilha com carregamento de trigo dos russos para os cubanos.
O leque de relações dos russos com países na região tem aumentado e poderia crescer ainda mais com a chegada de novos políticos ao poder, segundo analistas da Rússia e latino-americanos ouvidos pela BBC News Brasil.
No dia 11 de março, o presidente eleito do Chile, Gabriel Boric — um político de esquerda, será empossado. Em maio há eleições presidenciais da Colômbia — vista como o "principal aliado" dos Estados Unidos, seja pela já tradicional aliança para o combate às drogas ou por ser vizinha da Venezuela — e em outubro, no Brasil.
De Cali, na Colômbia, o russo Vladimir Rouvinski, professor de Relações Internacionais e Ciências Políticas da Universidade Icesi e especialista na relação entre a Rússia e a América Latina, contextualiza a relação atual de Putin com líderes latino-americanos.
"A Rússia busca uma reciprocidade simbólica com líderes da América Latina, mirando principalmente os Estados Unidos. Putin está querendo dizer aos americanos: 'Olha, não estou sozinho, e não se metam com a Ucrânia, com nosso território'. Putin quer mostrar que não está isolado", diz Rouvinski, que nasceu na Sibéria, estudou no Japão e mora na Colômbia desde o fim dos anos 90.
O especialista observa que Putin tem sua forma particular de fazer política internacional.
"Putin constrói relação a partir da confiança pessoal. E ele tem isso com Maduro e com Ortega. Mas ainda não conseguiu isso com o governo atual de Cuba. A Rússia é hoje um país capitalista e Cuba continua dizendo que é um país socialista. E como Cuba precisa de dinheiro, acredito que, se tiver que fazer uma opção futura, será pelos Estados Unidos, que têm mais recursos", acrescenta.
Foi essa relação "de confiança pessoal" que levou, por exemplo, os presidentes da Argentina e da Bolívia, Luis Arce, a telefonarem para Putin quando o envio das doses da Sputnik estava atrasado.
"A Bolívia tem um governo amigo na Rússia desde o início da pandemia. Em janeiro de 2021, chegou aqui um carregamento simbólico de 25 vacinas e depois vários carregamentos. Mas quando houve atraso, devido à demanda e a capacidade de produção (dos russos), Arce ligou para Putin e os envios foram acelerados", diz o porta-voz do presidente boliviano Jorge Richter, falando de La Paz.
Para ele, foi com o foco no "anti-imperialismo" americano que a relação entre a Bolívia e a Rússia passou a ser construída, durante o governo do ex-presidente Evo Morales (2006-2019), já que, segundo ele, os dois países não eram "muito próximos ou complementares".
No caso de Alberto Fernández, que abriu as portas da América Latina para a Sputnik V, entre os telefonemas com Putin destacou-se a ligação do russo para saber de seu estado de saúde depois que o argentino contraiu o vírus, quando já tinha as duas doses do imunizante.
Fernández atribuiu os "efeitos leves do coronavírus" à vacina enviada por Putin. E disse a Putin: "Vocês estiveram presentes (com as vacinas) quando o mundo não esteve".
Mas, sendo o Brasil o maior país da América Latina, em termos populacionais e econômicos, a visita de Bolsonaro ao Kremlin foi acompanhada ainda com maior atenção por parte dos estudiosos e políticos.
Para Rouvinski, a relação do Brasil com a Rússia de Putin "é totalmente diferente" da que é estabelecida com os demais países da região.
"O Brasil é uma potência global, um ator decisivo para a economia internacional. Faz parte dos BRICS e integra o Conselho de Segurança das Nações Unidas (uma cadeira não permanente e por dois anos, a partir de janeiro deste ano)", diz o professor.
Ele lembrou que a Rússia é um importante fornecedor de fertilizantes para o Brasil, mas que os dois países disputam internacionalmente o comércio de aviões. No caso do Brasil, através da Embraer, que em si é uma potência no ramo. O especialista mencionou ainda que o Brasil é o principal parceiro comercial da Rússia na América Latina, mas que representa, porém, "uma porcentagem pequena do comércio global da Rússia".
Sobre a visita de Bolsonaro a Putin, Rouvinski acredita que o presidente brasileiro buscou enviar uma mensagem aos Estados Unidos, diante de suas diferenças explícitas com o presidente Joe Biden, e ao seu próprio eleitorado.
"Mas lendo o que o presidente brasileiro disse, achei que ele foi cuidadoso e pareceu não querer problemas com os Estados Unidos", acrescenta.
Rouvinski entende que essa aproximação é "mais simbólica" do que efetiva no longo prazo. Os investimentos russos na região estão longe de se compararem com os dos Estados Unidos e da China na América Latina.
"Quando a gente compara, os investimentos russos são de chorar. Mas a América Latina ainda costuma ser vista como o quintal dos Estados Unidos", destaca, sugerindo que a presença russa, mesmo que simbólica, incomoda a Casa Branca.
Menos "simbólica" e, de certa forma, física é a presença russa na Venezuela, onde, afirmou Rouvinski, as armas das forças de segurança do país liderado por Maduro são russas.
"Os russos sempre olham com muita esperança para o mercado de armas da América Latina, mas sabem que a competição é grande."
Segundo agências internacionais de notícias, a Rússia vendeu armas e tanques para Cuba e Nicarágua e sistemas antimísseis para a Venezuela — e essa é a parte bélica e igualmente estratégica da relação dos russos com pelo menos parte do mapa da América Latina.
Rouvinski lembra que, já em 2008, na guerra pela Geórgia, os russos já tinham começado a considerar a reciprocidade com a América Latina também como estratégia para se contrapor aos Estados Unidos.
Mas por que Fernández, da Argentina, o chileno Boric e o colombiano Gustavo Petro, da frente de esquerda Pacto Histórico, que lidera as pesquisas de intenção de votos, e até o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva — pré-candidato às eleições presidenciais do Brasil deste ano, tão diferentes de Putin, poderiam também receber aceno de Moscou?
Fernández, segundo analistas argentinos, busca reduzir a dependência dos Estados Unidos, do qual necessita por seu acordo bilionário com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
E os demais? "Apesar das distâncias ideológicas, o novo governo do Chile poderia estabelecer uma relação mais próxima com a Rússia, que há muito tempo tenta essa aproximação com nosso país. E Boric poderia ter essa maior aproximação, apesar do que pensem os Estados Unidos", diz Guillermo Holzmann, professor de ciências políticas da Universidade de Valparaiso.
Na opinião de Rouvinski, governos como os de Petro e Lula, se eleitos, seriam "multipolares". "Um discurso multipolar que os russos também adoram", diz.
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