Em abril de 2018, quando conflitos no leste da Ucrânia já duravam pouco mais de quatro anos, o padre Sergey Dmitriev estava nos arredores da linha de frente, perto da cidade de Maryinka.
Era domingo de Páscoa e os últimos dias tinham sido calmos. O clima era bom. O padre contava piadas e se preparava para conduzir uma missa para militares nos dias seguintes.
Mas quando o padre Dmitriev estava terminando de contar uma piada, toda a harmonia daquele dia foi interrompida por um tiro — muito alto e muito próximo para ser uma bala disparada nas linhas de frente do conflito.
O que aconteceu, na verdade, foi que um jovem engenheiro atirou em si mesmo em um prédio ao lado de onde Dmitriev estava.
Segundo o padre e Andrii Kozinchuk, um psicólogo militar que também estava lá naquele dia, alguns oficiais que andavam pela região se aproximaram do morto e, ao vê-lo, zombaram dele.
"Eles diziam: 'Que idiota, atirou em si mesmo'", recorda o padre.
"Eu disse: 'Temos um psicólogo à disposição, será que os combatentes deveriam conversar mais com ele (o especialista)?'"
"Eles responderam: 'não, por quê?'. Trataram com naturalidade, como se nada tivesse acontecido. O cara era um bêbado, disseram, não tem nada além disso."
O padre Dmitriev viaja com frequência para atuar como capelão militar das tropas atuando a leste de Kiev. Ele não é necessariamente a pessoa que você imagina quando pensa na Igreja Ortodoxa da Ucrânia: ele tem uma orelha furada, fala muitos palavrões, usa jeans e moletom e tem paixão por carros.
Ele já ouviu falar de tantos suicídios entre militares até agora que a história do engenheiro em Maryinka já não se destaca do resto. Mas ele se lembrou do engenheiro em dezembro de 2021, quando recebeu uma mensagem dizendo que o oficial que zombou daquele homem que se matou também estava morto.
"Aquele oficial foi o crítico mais pesado do engenheiro", diz o padre Dmitriev. "E ele atirou em si mesmo também."
Enquanto a brutal guerra no leste da Ucrânia entra em seu nono ano, a Rússia está reunindo soldados ao longo das fronteiras ucranianas — o que está sendo interpretado por potências ocidentais como os preparativos de uma invasão.
Sabe-se que suicídios de militares e veteranos associados aos conflitos na Ucrânia ocorreram nos últimos anos, mas os números são incertos. Suicídios são registrados como mortes "fora do combate", o que dificulta o registro.
Em 2018, o então procurador-chefe militar Anatoliy Matios disse que 554 militares da ativa tiraram a própria vida nos primeiros quatro anos de guerra, mas o número não foi confirmado pelo Ministério da Defesa. Fontes militares disseram à BBC que quaisquer números oficiais apresentados seriam quase certamente subnotificados, porque muitos suicídios simplesmente não foram registrados como tal.
"Enquanto a guerra durar, eles nunca publicarão esses números", disse Volodymyr Voloshin, psicólogo militar em Kiev. "Eles temem que os russos os usem para prejudicar nossa moral."
Um porta-voz do Ministério da Defesa disse à BBC que os números nunca foram escondidos, mas levaria uma semana para reuni-los.
A vice-ministra para Assuntos dos Veteranos, Inna Darahanchuk, disse que seus registros indicam que cerca de 700 veteranos morreram por suicídio desde 2014, mas reconhece que é difícil saber o número real.
As famílias de militares só têm direito a apoio financeiro e social se puderem provar que o suicídio foi relacionado à guerra, diz Darahanchuk.
Mas "sabendo que é impossível provar que o suicídio está relacionado aos conflitos, os parentes tentam esconder o fato de que o veterano cometeu suicídio por causa de suas crenças religiosas", ela acrescenta.
É uma constatação trágica: os parentes são deixados entre uma burocracia governamental e uma fé implacável.
País tem uma das piores taxas de suicídio no mundo
O suicídio continua sendo um crime na Ucrânia e a Igreja Ortodoxa, fé predominante no país, geralmente se opõe à presença de padres nos enterros daqueles que tiram a própria vida.
"Um padre não pode conduzir um sepultamento de alguém que cometeu suicídio, ele não pode nem comparecer ao funeral", explica o padre Dmitriev. "Especialmente se for uma cidade pequena. A família simplesmente se recusa a enterrá-los."
Dmitiriev não compartilha dessa opinião. Antes da guerra, ele trabalhava em um hospital e insistia que ritos funerários deveriam ser realizados para aqueles que tiraram as próprias vidas.
"Eu nunca me recusei, nem uma única vez, a enterrá-los", conta, explicando que usa algumas brechas nas regras para isso.
Por estar conectado às histórias do engenheiro que atirou em si mesmo e do oficial que acabou fazendo o mesmo depois de zombá-lo, Dmitiriev garantiu que eles tivessem enterros adequados, com a presença de pessoas queridas e orações.
A Ucrânia tem uma das piores taxas de suicídio relativo à população e, ao mesmo tempo, um profundo estigma associado ao ato.
Nenhum dos muitos parentes de militares que morreram por suicídio abordados pela reportagem concordou em dar entrevista, em qualquer circunstância.
A cineasta Oksana Ivantsiv está dirigindo um documentário sobre o assunto.
"Na Ucrânia, o filho ou a filha que comete suicídio nunca é mencionado da mesma forma que aquele que morreu em combate. Suas famílias ficam muito isoladas", diz a diretora.
O estigma é parte de uma lacuna muito mais ampla no cuidado com a saúde mental no país — que tem raízes na era soviética, quando a psicologia era citada apenas no processo de detenção e punição de dissidentes.
"A psicologia ou a psiquiatria eram puramente punitivas", aponta Ulana Suprun, ex-ministra interina da Saúde da Ucrânia. "Dissidentes eram colocados em hospitais psiquiátricos. Se uma pessoa tivesse sido internada em um hospital psiquiátrico, nunca poderia assumir um emprego no governo, nem mesmo trabalhar como caixa em um banco."
De acordo com Suprun, os cuidados com a saúde mental praticamente "não existiam" na Ucrânia até 2014 — quando os manifestantes derrubaram o então presidente, Viktor Yanukovytch, e psicólogos voluntários montaram uma tenda na praça Maidan, em Kiev, para incentivá-los a falar sobre os traumas vividos durante a revolta.
Os psicólogos perceberam que as pessoas não ficavam à vontade para ir até a tenda em público, então se mudaram para um prédio sindical próximo. Quando o prédio foi incendiado, o McDonald's local ofereceu um abrigo temporário para o serviço.
Suprun também ajudou a criar a primeira linha telefônica de prevenção ao suicídio em 2018, a Lifeline Ukraine — cinco a seis décadas depois que iniciativas do tipo surgiram nos Estados Unidos e no Reino Unido.
A Lifeline Ukraine trabalha em um pequeno escritório em uma área industrial de Kiev, acima de uma concessionária de carros que cede o espaço gratuitamente. A organização emprega uma equipe de 26 pessoas para atender chamadas nas 24 horas do dia, pagando seus salários com doações do Reino Unido, EUA, Austrália, entre outros, e de algumas empresas privadas. Já o financiamento por parte do governo ucraniano é zero, embora uma carta de congratulações do ministro da Defesa esteja pendurada na parede do escritório.
Alguns dos atendentes são veteranos que, por sua vez, atendem muitas ligações de colegas veteranos, principalmente nas madrugadas do fim de semana, quando as pessoas em risco bebem mais. A equipe muitas vezes pede que estas pessoas se lembrem de momentos anteriores a 2014 em que eram felizes, ou que peguem objetos que lembrem aqueles tempos. É uma tentativa de reconectar com um passado menos estressante, projetando-o como um recomeço.
Svetlana, uma veterana que mais tarde se formou em psicologia e que estava de plantão no escritório no início desta semana, disse que deu ao marido um lenço bordado quando ele foi para o front em 2014.
"O que ajudou um combatente a lidar com as coisas antes da guerra irá ajudá-lo a lidar com o futuro", explica.
Mas muitos veteranos não estão conseguindo lidar com suas situações. Eles ligam com estresse pós-traumático avançado, conta Svetlana, "muitas vezes tentando silenciar a dor com álcool".
Um país sob estresse
O número de chamadas para a Lifeline Ukraine não aumentou com a escalada da ameaça da Rússia, mas o livro de registro mostra que os temas das conversas estão abordando muito mais esta situação iminente.
"Eles estão ansiosos com essa incerteza, é algo que está se arrastando", afirma Svetlana.
A situação também está levando a divergências entre as pessoas que antes eram próximas.
"Ninguém sabe mais quem é inimigo e quem é amigo."
Ulana Suprun diz que esta é a situação que "Putin (presidente da Rússia) quer": "Uma Ucrânia constantemente sob estresse, incapaz de fazer planos de longo prazo, incapaz de investir no futuro."
A guerra afetou a capacidade da Ucrânia de progredir nos cuidados de saúde mental, mas os tabus culturais do país antecedem o conflito, aponta Andrii Kolunchik, psicólogo militar que trabalha com o padre Dmitriev.
"Tem sido assim há séculos", disse ele. "Em nossa cultura, os homens preferem morrer a pedir ajuda. Dizemos que quando um soldado está cantando, seu coração está sangrando. Então, se ele diz 'estou bem', ele não está bem."
Olexa Sokil, um veterano reservado e taciturno que viveu alguns dos piores momentos que a guerra teve a oferecer em 2014, costumava dizer "estou bem" e quase se matou várias vezes, segundo ele mesmo conta.
Foi só quando viajou para a Lituânia para ter atendimento com um psicólogo militar que sentiu que realmente podia falar.
"Eu me abri com ele", lembra Sokil. "E ele me salvou."
Mas na Ucrânia, diz o militar, todos os veteranos estão sofrendo.
"Não se trata apenas do estigma em relação ao suicídio, trata-se de um estigma em relação aos veteranos", denuncia. "A Ucrânia está matando seus veteranos. Temos os ministérios gastando milhões para se exibir em competições esportivas, enquanto em pequenos vilarejos e cidades os veteranos estão morrendo porque nem sequer têm um assistente social para ir até eles e perguntar como estão."
Sokil acabou de ter um filho, e ele e sua esposa tiveram atendimentos com um psicólogo durante toda a gravidez.
"Aquele psicólogo nos colocou inteiros de volta", lembra ele. "Superamos nosso medo da perda."
Inna Darahanchuk, vice-ministra para Assuntos dos Veteranos, disse à BBC que a melhoria no apoio à saúde mental é a prioridade do órgão para o próximo ano.
Padre usa brecha para dar assistência às famílias
No centro de Kiev, ao longo de um muro perto da igreja do padre Dmitriev, há retratos da maioria dos mortos em combate ucranianos — que somam cerca de 14 mil, segundo dados do governo. Faltam ali os homens e mulheres, militares ativos ou veteranos, que se mataram. O padre Dmitriev gostaria que seus retratos estivessem lá também.
Alguns anos antes da guerra, Dmitriev descobriu que havia uma espécie de brecha nas regras da igreja sobre suicídio que permitia a um padre comparecer a um funeral para dar apoio à família da pessoa morta, desde que não conduzisse o funeral.
É assim que ele contorna o sistema. E, quando pode, encoraja outros padres ortodoxos a fazerem a mesma coisa.
"Digo: vá lá e ore, diga algumas palavras boas. Leia o Pai Nosso. A família não saberá se é o rito completo ou não."
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