Aos 94 anos, Joseph Ratzinger — mais conhecido como o papa emérito Bento XVI — reagiu com "comoção e vergonha" ante um escândalo de pedofilia no qual o seu nome aparece implicado. Um relatório de 1.700 páginas encomendado pela Igreja Católica da Alemanha e elaborado pelo escritório de advocacia Westpfahl-Spilker-Wastl (em Munique) acusa Ratzinger de "inação" ante casos de abusos de crianças envolvendo quatro sacerdotes.
Então arcebispo de Munique e Freising, Ratzinger nada teria feito contra os suspeitos de pedofilia, entre 1977 e 1982, de acordo com o dossiê. "Acreditamos que ele possa ser acusado de má conduta em quatro casos. Dois deles dizem respeito a abusos cometidos durante o seu mandato, os quais foram sancionados pelo Estado", explicou o advogado Martin Pusch, ao divulgar o documento. Apesar dos crimes comprovados, inclusive pelos tribunais, os dois padres permaneceram dentro da Igreja, sem que Ratzinger tomasse qualquer atitude.
Os advogados responsáveis pelo relatório se disseram convencidos de que Ratzinger era informado sobre os abusos sexuais cometidos pelos quatro padres. "A Igreja não fez nada", reforçou Pusch. Um dos casos é emblemático. O sacerdote Peter Hullermann foi transferido para a Arquidiocese de Munique, em 1980, após abusar de crianças na Renânia do Norte-Vestfália, na Baviera.
Depois de ter sido condenado a uma pena de prisão com sursis em 1986, o padre retornou para a Baviera, onde voltou a cometer o crime por décadas. Somente em 2010, ele foi forçado a se aposentar. O dossiê afirma que Ratzinger ignorou as acusações contra Hullermann. O relatório é muito mais amplo e denuncia o "acobertamento sistemático" de violência contra menores entre 1945 e 2019 sob o pretexto de "proteger a instituição da Igreja".
"O papa emérito expressa sua comoção e vergonha pelos abusos de menores cometidos por clérigos e oferece sua proximidade e orações a todas as vítimas", declarou o monsenhor Georg Gänswein, secretário particular de Bento XVI, ao revelar que o pontífice emérito ainda não leu o documento. "Nos próximos dias ele examinará o texto com a atenção necessária", assegurou o monsenhor. Bento XVI renunciou ao pontificado em 28 de fevereiro de 2013 e foi sucedido por Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Em extensa carta pública redigida logo depois da aposentadoria, Ratzinger escreveu: "No que diz respeito ao abuso moral de menores por parte de padres, só posso, como vocês sabem, reconhecê-lo com profunda consternação. Mas nunca tentei encobrir essas coisas". No entanto, Bento XVI não fez menção a abusos de cunho sexual.
O dossiê também implica o cardeal Reinhard Marx, atual arcebispo de Munique e Freising, ao acusá-lo de negligência em dois casos de padres suspeitos de pedofilia. Em breve declaração à imprensa, Marx se disse "abalado e envergonhado". "Meu primeiro pensamento, hoje, é pelos afetados por abusos sexuais. A crise dos abusos continua como um choque profundo para a Igreja", afirmou.
Até o fechamento desta edição, o Vaticano não tinha comentado detalhes do relatório. O porta-voz da Santa Sé, Matteo Bruni, afirmou que a Igreja reitera o "sentimento de vergonha e remorso pela violência contra menores cometida pelos clérigos". "A Santa Sé assegura a todas as vítimas sua proximidade e confirma o caminho que percorreu para proteger os pequenos, garantindo-lhes um ambiente seguro", concluiu.
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Sobreviventes
O Correio repercutiu o tema com vítimas de padres pedófilos. A norte-americana Mary McHale, 49 anos, não ficou "nem um pouco chocada" com as revelações sobre Bento XVI. "Creio que a maioria das vítimas também compartilha do meu sentimento. Eu acredito que todos os papas souberam dos abusos, direta ou indiretamente", disse a mulher violentada aos 17 anos pelo padre e professor James Gaffney, em Reading (Pensilvânia). Ela também não se sentiu impressionada com a reação de Bento XVI e comparou as declarações de Ratzinger a "um tapa no próprio pulso". "Deveria haver ramificações legais, mas elas jamais ocorrem", lamentou.
Por sua vez, Mike McDonnell, 49, abusado dos 11 aos 13 pelos padres John P. Schmeer e Francis X. Trauger, na Filadélfia, lembrou que a Igreja, desde os mais altos postos, trabalha com a promoção. "É a entrega do báculo e da mitra, além da transmissão silenciosa de segredos seculares. A hierarquia da Igreja Católica está projetada para proteger uns aos outros, bens e sacerdotes. O direito canônico permite isso", admitiu. Ele não descarta que Ratzinger tenha acobertado o próprio irmão, Georg Ratzinger, diretor do coral de garotos de Regensburg (Alemanha), entre 1964 e 1994.
Para McDonnell, o relatório divulgado ontem levanta suspeitas de que Bento XVI tenha acobertado outras autoridades eclesiásticas ou até mesmo as próprias falhas. "A Igreja quer que a comunidade de fiéis conheça a verdade intermediária, não a verdade final. A Alemanha teve milhares de crianças vítimas. Ninguém sabia mais sobre os casos de abuso sexual em Munique e ninguém fez menos do que Bento (Joseph Ratzinger)", destacou o diretor de comunicação da Rede de Sobreviventes de Abusos Praticados por Padres (Snap).
O chileno Juan Carlos Cruz Chellew, 59, abusado pelo ex-padre chileno Fernando Karadima, aos 15, disse que o pontificado de Francisco tem sido mais explícito na punição aos pedófilos. "Francisco fez muito mais contra os abusos do que seus antecessores. Todavia, falta muito a ser feito", comentou. Cruz entende que a reputação de Bento XVI está em xeque. "É algo lamentável. Ele já tem 94 anos e está próximo de partir. Mas se isso for verdade, causará muitos danos à imagem de Ratzinger."