Foi um terremoto avassalador que sacudiu a geopolítica. Uma década depois de os Estados Unidos e as forças da coalizão bombardearem o Afeganistão e retirarem do poder o Talibã, a milícia fundamentalista islâmica retornou ao palácio de Cabul em 15 de agosto de 2021, depois que o presidente, Ashraf Ghani, fugiu do país. Dias depois, os EUA montaram um operativo gigantesco para retirar diplomatas, cidadãos e militares do território afegão. Quase cinco meses depois, Suhail Shaheen, porta-voz do Talibã, falou com exclusividade ao Correio, por telefone.
Fluente em inglês e educado na Universidade de Cabul, Shaheen editou o jornal Kabul Times durante o primeiro governo do Emirado Islâmico do Afeganistão — como o Talibã se intitula —, entre 1996 e 2001. Durante a entrevista, o porta-voz garantiu que os primeiros meses do novo governo foram "repletos de conquistas" e citou o restabelecimento da ordem e da segurança. Ele também assegurou que os talibãs estão "comprometidos com todos os direitos sagrados das meninas e mulheres" e citou a educação e o trabalho. Ao ser questionado sobre a adoção da pena de morte e de execuções públicas, Shaheen tergiversou: "Como o povo do Afeganistão é muçulmano, ele tem suas leis islâmicas", disse.
O talibã também falou sobre o receio da comunidade internacional de o grupo estabelecer laços com grupos jihadistas, inclusive a rede terrorista Al-Qaeda, a qual abrigou e forneceu apoio antes dos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e em Washington. Shaheen instou o Ocidente a investir no Afeganistão e disse que todos os países independentes precisam reconhecer o direito do povo afegão em ter um novo governo.
Como o senhor analisa os quase cinco meses de governo talibã no Afeganistão?
Os primeiros meses de novo governo foram repletos de conquistas. Nós mantivemos uma ordem de segurança em todo o país. As pessoas estão livres para viajar de uma província a outra. Colocamos um fim aos sequestros. Antes, as pessoas não podiam caminhar pelas ruas, pois corriam o risco de serem alvos de bandos armados e de ladrões. Aquele tempo acabou. Vivemos nova fase de segurança. Nós temos enviado delegações a outras nações e tentado atrair investidores para aplicarem dinheiro nos recursos naturais do Afeganistão. Nós anunciamos o pagamento dos salários de todos os funcionários públicos, os quais estavam atrasado havia três meses. Também desenvolvemos um engajamento bastante frutífero com a comunidade internacional. As pessoas estão unidas, em apoio ao governo. Fomos capazes de ganhar os corações e as mentes das pessoas das áreas rurais e mesmo das cidades. Este é um tempo em que experimentamos sanções muito duras e problemas econômicos. Nossos bancos não estão funcionando. Fomos capazes de fornecer serviços ao nosso povo com nossa receita interna.
O mundo parece temeroso dos retrocessos do Afeganistão no campo dos direitos humanos...
Estamos comprometidos com todos os direitos sagrados das meninas e mulheres, incluindo o direito de acesso à educação e ao trabalho. Não temos problema com isso. As garotas frequentam as escolas de ensino médio e universidades particulares. Em muitas províncias, temos trabalhado para que essas escolas também funcionem nos próximos meses. Um decreto foi assinado por nosso líder supremo (Haibatullah Akhundzada), segundo o qual todos os direitos são dados às mulheres, incluindo o direito à herança e o de escolher o marido. Elas poderão empreender. As mulheres também não serão compelidas a casar sem seu consentimento. Não temos problema com as mulheres recebendo educação ou trabalhando, mas, como muçulmanas, elas têm que observar o uso do hijab (véu islâmico).
Vocês restaurarão a pena de morte e as execuções públicas?
Como o povo do Afeganistão é muçulmano, ele tem suas leis islâmicas, que se baseiam na justiça. Elas serão estabelecidas com base nas aspirações dos afegãos. Temos um sistema judicial dotado de tribunais primários, de uma Suprema Corte e de uma Corte de Cassação. Uma pessoa poderá apelar à Suprema Corte e, se não estiver satisfeita, recorrer à Corte de Cassação. É um sistema bastante justo, baseado na sharia (lei islâmica).
O uso da burca está descartado pelo Talibã ou vocês exigirão um código de vestimentas mais rígido?
A burca não é um véu imposto às mulheres. Elas podem escolher entre a burca e qualquer tipo de véu. Não é obrigatório que a mulher afegã tenha uma burca. Ela pode optar pelo hijab. A burca não é compulsória.
Especialistas temem que o Talibã possa manter laços com a Al-Qaeda e com outros grupos jihadistas...
Sob o Acordo de Doha, nós nos comprometemos a não permitir que ninguém use o território do Afeganistão para planejar ataques contra os EUA ou contra seus aliados. Isso é um compromisso nosso. É nossa política e nossa lei. Nós queremos anunciar ao mundo que estamos cumprindo com o nosso compromisso. O outro lado também tem obrigações a serem implementadas pelo Acordo de Doha. Eu me refiro aos EUA, que precisam remover os nomes dos membros do Emirado Islâmico do Afeganistão da lista negra e da lista de recompensas. Também têm que retirar as sanções impostas ao povo do Afeganistão. Nossa população enfrenta uma crise humanitária por causa dessas sanções.
O Talibã considera o Estado Islâmico (Daesh) um inimigo?
O Estado Islâmico começou a lutar contra nós nas províncias do leste e do norte do Afeganistão, enquanto o nosso país seguia sob ocupação dos EUA e de seus aliados. Naquela época, de um lado, lutávamos contra os invasores e os ocupantes; de outro, contra o Estado Islâmico. Nós limpamos este grupo de todas as províncias afegãs. Não há mais presença do Estado Islâmico em solo, no país. No entanto, eles realizam pequenos e esporádicos incidentes aqui e ali, mas não são capazes de lançar ataques massivos ao país. Nós continuaremos a combatê-los, pois causam insegurança na nação. Nossas forças são totalmente capazes de enfrentá-los e de manterem a segurança no Afeganistão.
Desde a ascensão do Talibã ao poder, quais os principais ganhos diplomáticos alcançados por vocês?
Desde o estabelecimento de nosso escritório político em Doha, nossa façanha diplomática foi o Acordo de Doha. Sob ele, firmamos negociações com os EUA, por 18 meses, para encerrar a ocupação do Afeganistão. Conseguimos um pacto assinado na presença de observadores internacionais. Com base nele, as forças americanas saíram do Afeganistão. Também nos engajamos com vários países, aos quais explicamos nossa política. Temos boas relações com a China e com a Rússia. Ambos podem ser bons parceiros em termos de cooperar com o novo Emirado Islâmico do Afeganistão em diferentes áreas, como educação, investimentos, infraestrutura, e na construção do país.
Que mensagem enviaria às nações que insistem em não reconhecer o Talibã no governo do Afeganistão?
Todos os países que permitem a liberdade e a independência costumam questionar o reconhecimento do novo governo do Emirado Islâmico do Afeganistão. Esse governo é do povo do Afeganistão, que se opôs aos invasores e ocupantes por duas décadas, e foi bem-sucedido. Todos esses países independentes deveriam reconhecer o nosso governo. Ao mesmo tempo, nós os saudamos a fazerem investimentos no país e a realizarem projetos econômicos. Temos recursos naturais, minérios. Venham e invistam no nosso país. Queremos manter boas relações com todos. O Afeganistão é uma realidade. Eles podem reconhecer essa realidade. Estamos dispostos a resolver qualquer problema que por ventura existir, por meio da boa conversa e do entendimento.
Qual é a sua perspectiva para o Afeganistão em 2022?
Tivemos altos e baixos nos últimos 20 anos. Cinquenta e quatro países, liderados pelos EUA, invadiram o nosso país. Foi um grande problema que enfrentamos, a luta contra a ocupação e a liberação de nossa nação. Esperamos ser capazes de transpor obstáculos, incluindo os econômicos. Os países que desejam ser protetores dos direitos humanos não deveriam punir o povo do Afeganistão por causa de seu governo. Seria muito injusto se essas nações quisessem se vingar da população afegã por ter um Emirado Islâmico no poder. É preciso separar a política de assuntos humanitários.