A fala surgiu de improviso. Não estava no roteiro do discurso durante a tradicional audiência-geral das quartas-feiras, no Vaticano. Ao propor uma reflexão sobre a figura de São José e sobre a paternidade, o papa Francisco citou "os pais diante dos problemas dos filhos". "Quanta dor ali! Pais que veem orientações sexuais diferentes dos filhos, lidem com isso e acompanhem seus filhos, e não se escondam no comportamento da condenação. (...) Nunca condenem um filho", afirmou o pontífice. "Deus não promete que nunca teremos medo. Mas, com a ajuda dele, não será o critério de nossas decisões. A oração trará luz e paz", acrescentou, ao aconselhar pais que enfrentam a tristeza.
Morador da comuna de Rimini, a 350km de Roma, o engenheiro biomédico Gabriele Morri, 47 anos, disse ao Correio que gostou muito da declaração de Francisco. "Essas palavras são muito importantes para as pessoas LGBTQIA católicas, crentes. Não é o meu caso, pois renunciei ao batismo em julho passado. O papa faz o melhor que pode ante argumentos que não são fáceis para ele. Seria melhor se Francisco pudesse dizer que não há nada de errado em ser gay, mas entendo que ele não pode fazê-lo", comentou o italiano, que mantém um relacionamento homoafetivo há 14 anos. Ele se disse "incomodado" com o fato de o pontífice misturar temas, como doença, dor e homossexualidade.
Morri contou que provém de uma família muito católica. "Minha mãe era catequista e integrava a parte moderna da família. Felizmente, ela incutiu em mim a percepção de que Deus é amor. Meu pai vive sua religião no fanatismo e no ódio. Aos 24 anos, eu me assumi para a minha mãe. Minha mala estava pronta no meu quarto. Ela disse que não esperava isso, mas prometeu não contar a ninguém, muito menos para o meu pai", relatou. Ele somente revelou a orientação sexual ao pai quatro anos atrás. "Fiquei sem visitar minha família por seis meses, pois ele não quis me ver. Meu pai afirmou que entre homens não pode haver amor, e que tudo era depravação."
Secretário-geral da Arcigay — a principal organização não governamental em defesa da causa LGBTQIA na Itália —, Gabriele Piazzoni considerou "muito positivo que o Santo Padre se expresse dessa forma em relação aos pais". "Como sabemos, a violência por parte dos pais é, infelizmente, uma das mais difundidas contra os homossexuais. O apelo do pontífice é muito sensato e esperamos que tenha efeitos positivos para muitos rapazes e moças", afirmou ao Correio. Ele lembra que não é a primeira vez que o papa mostra abertura para os homossexuais, ao contrário de seus antecessores. "Esperamos que esse pensamento de Francisco seja aceito por toda a Igreja Católica. No entanto, muitas vezes, encontramos hostilidade e discriminação por parte de bispos e de sacerdotes em várias regiões do planeta."
Piazzoni disse não saber se as frequentes posições de Francisco, antagônicas com a doutrina oficial da Igreja, seriam uma antecipação do futuro. "É obvio que eu espero que sim. Acredito que, para a Igreja, há cada vez mais a preocupação de não ser vista como 'ruim' por parte de centenas de milhões de católicos que não compreendem a posição oficial da instituição em relação aos gays e pedem mudanças", comentou o secretário-geral da Arcigay. Ainda de acordo com ele, a opinião pública influencia bastante as posições expressas pelo papa. "A Igreja tem medo de perder o consenso entre os fiéis que tenham parentes, amigos ou colegas homossexuais e que não toleram mais o tradicional conservadorismo das hierarquias eclesiásticas. Esperamos que isso leve a um futuro mais inclusivo para os gays."
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Sinais confusos
O líder da Igreja Católica emitiu gestos controversos sobre a questão LGBTQIA+
Integração à sociedade
"Se uma pessoa é gay, busca a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?", indagou o papa Francisco, durante viagem entre o Rio de Janeiro e Roma, em 2013. Ele defendeu que os homossexuais não deveriam ser maginalizados, mas integrados à sociedade.
União civil homossexual
No documentário Francesco, lançado em 2020, o papa Francisco tornou-se o primeiro pontífice a endossar as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. "As pessoas homossexuais têm o direito de estarem em uma família. São filhas de Deus". afirmou. "Você não pode expulsar alguém de uma família, nem tornar sua vida miserável por isso. O que temos que ter é uma lei de união civil", declarou o líder católico.
Bênção de padres
Em março de 2021, sob a justificativa de que "Deus nãoabençoa e nem pode abençoar o pecado", o papa Francisco proibiu os padres de darem a bênção a uniões civis homossexuais. O pontífice advertiu que tal gesto seria invalidado.
"Desordem"
De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, "atos homossexuais" são "intrinsecamente desordenados" e "contrários à lei natural".