O local do discurso não poderia ser mais simbólico; o tom, solene e contundente. Exatamente um ano após simpatizantes do magnata republicano Donald Trump atacarem o Congresso, o presidente norte-americano, Joe Biden, atacou diretamente o antecessor, sem mencionar-lhe o nome. "Aqueles que invadiram este Capitólio e aqueles que instigaram e incitaram, e aqueles que os convocaram a fazê-lo, colocaram uma adaga na garganta da América — na democracia", declarou ele, em pronunciamento a partir do Salão das Estátuas, sob a rotunda do Capitólio. "Aqui está a verdade: o ex-presidente dos EUA criou e disseminou uma teia de mentiras sobre as eleições de 2020. Ele fez isso porque valoriza o poder sobre os princípios. (...) O ex-presidente e seus simpatizantes tentam reescrever a história. Querem que vocês vejam o dia das eleições como o dia da insurreição", acrescentou Biden.
O líder democrata avisou que defenderá os Estados Unidos. "Não permitirei que ninguém coloque um punhal contra a garganta de nossa democracia", prometeu. "Esta não é uma terra de reis ou ditadores ou autocratas. Nós somos uma nação de leis, de ordem, não de caos; de paz, não de violência." Biden convidou os norte-americanos a um exercício de memória. "Fechem os olhos.Voltem àquele dia. O que vocês veem? Vândalos em fúria, tremulando, pela primeira vez, dentro deste Capitólio, uma bandeira da Confederação que simbolizava a causa para destruir a América, para nos separar. Nem mesmo durante a Guerra Civil isso nunca aconteceu. Mas aconteceu aqui, em 2021", lamentou.
"Pela primeira vez em nossa história, um presidente não apenas perdeu a eleição; ele tentou impedir a transferência pacífica do poder quando uma multidão violenta invadiu o Capitólio", atacou Biden. "Não era um grupo de turistas. Era uma insurreição armada. Não queriam confirmar a vontade do povo, e sim negá-la", concluiu. O atual inquilino da Casa Branca destacou que os EUA vivem um "ponto de inflexão" na história. "Estamos novamente envolvidos em uma luta entre a democracia e a autocracia, entre as aspirações da maioria e a ganância de alguns poucos. Defenderei esta nação", reiterou. Biden enviou um recado aos opositores: "Você não pode amar este país apenas quando vence; você não pode obedecer à lei apenas quando lhe convém".
Resposta
Trump não ficou em silêncio. Apesar de ter cancelado uma entrevista coletiva e evitado uma aparição pública, ele divulgou quatro comunicados à imprensa e denunciou um "teatro político". "Biden, que destrói nossa nação com políticas insanas de fronteiras, eleições corruptas, desastrosas políticas energéticas, mandatos inconstitucionais e devastadores fechamentos de escolas, usou meu nome, hoje (ontem), para tentar dividir ainda mais a América", afirmou o magnata republicano. De acordo com Trump, "esse treatro político é apenas uma distração para o fato de Biden ter fracassado total e completamente". Ele acusou os democratas de pretenderem dominar o 6 de janeiro para que possam alimentar temores e dividir a América. "Deixe-os, pois a América vê através de suas mentiras e polarizações", disse Trump.
Historiador político da American University (em Washington) e especialista que previu a derrota eleitoral de Trump, Allan Lichtman admitiu ao Correio que Biden apenas disse a verdade sobre o antecessor. Segundo ele, não teria havido uma insurreição contra o Capitólio se não fosse pela "mentira sem precedentes" sobre fraudes nas eleições, além do fato de Trump ter exortado os seguidores a "lutarem como inferno". "Trump jamais foi responsabilizado por nenhum de seus crimes como empresário ou presidente. Ele precisa ser chamado por colocar seu próprio ego sua cobiça de poder à frente do bem pelo país", comentou.
Lichtman não descarta um retorno da extrema-direita ao poder. "A depender da situação do país, Trump ou outro republicano com ideias semelhantes poderia vencer em 2024, destruindo a nossa última defesa contra a autocracia nos Estados Unidos", alertou.
FRASES
"Não permitirei que ninguém coloque um punhal contra a garganta de nossa democracia"
"Vivemos um ponto de inflexão na História. (...) Estamos novamente envolvidos em uma luta entre a democracia e a autocracia"
"Você não pode amar este país apenas quando vence. Você não pode obedecer à lei apenas quando lhe convém. Você não pode ser um patriota quando aceita e permite mentiras."
"O ex-presidente dos EUA criou e disseminou uma teia de mentiras sobre as eleições de 2020. Ele fez isso porque valoriza o poder sobre os princípios"
PALAVRA DE ESPECIALISTA
"A insurreição continua"
Allan Lichtman
"A democracia é preciosa e, como todas as coisas preciosas, pode ser destruída. Durante a 'era dourada' da democracia, depois da Primeira Guerra Mundial, o número de democracias disparou de um punhado para 25 nações. Em 1943, caiu para 11. Hoje, nos Estados Unidos, a democracia se esvai diante de nossos olhos. Somos, agora, uma democracia imperfeita, não mais 'completa'.
A tentativa fracassada de derrubar uma eleição legítima não foi um evento singular. A insurreição ao Capitólio foi parte de um ataque prolongado e em andamento à democracia americana. Não pelos insurrecionistas do dia-a-dia, mas por Trump e por outras elites privilegiadas empenhadas em manter o poder a qualquer custo.
A insurreição continua, com novas medidas de supressão de eleitores, esforços para reverter a decisão popular em estados republicanos e a agitação da grande mentira de que os EUA têm um presidente eleito de forma ilegítima."
Historiador político da American University (em Washington)
CURTAS
Emoção à mostra
Durante o pronunciamento da vice, Kamala Harris, também sob a rotunda do Capitólio, Joe Biden deixou-se fotografar enxugando as lágrimas. "O espírito americano foi colocado à prova", disse Kamala. "Devemos nos unir em defesa da nossa democracia."
Na contramão
Poucos republicanos, como o ex-candidato presidencial e senador Mitt Romney, ousaram condenar sem rodeios o ataque ao Capitólio. "Estamos nos colocando em perigo ao ignorar as lições de 6 de janeiro. A democracia é frágil, não pode sobreviver sem líderes íntegros e corajosos, que estejam mais preocupados com a força de nossa República do que em vencer as próximas eleições", escreveu Romney no Twitter.
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