OBITUÁRIO

Desmond Tutu, Nobel da Paz, 90 anos

Ícone na luta contra o apartheid, regime de segregação racial que vigorou por mais de 40 anos na África do Sul, arcebispo da Igreja Anglicana morre na Cidade do Cabo. Líderes e personalidades mundiais prestam homenagens ao religioso

Enaltecido com frequência como a consciência moral da África do Sul e grande reconciliador da nação, dividida por uma feroz política racial durante mais de quatro décadas, o arcebispo anglicano Desmond Mpilo Tutu morreu, ontem, aos 90 anos, na Cidade do Cabo. Com a saúde debilitada, o vencedor do Nobel da Paz de 1984, conquistado por sua oposição não violenta ao apartheid, afastou-se da vida pública após a aposentadoria, em 2013, e viveu os últimos anos em uma comunidade para idosos com a mulher, Nomalizo Leah Shenxane.

"O falecimento do arcebispo emérito Desmond Tutu é outro capítulo de luto na despedida de nossa nação a uma geração de notáveis sul-africanos que nos deixou como legado uma África do Sul libertada", anunciou o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, em comunicado. "Um homem de intelecto extraordinário, integridade e invencibilidade contra as forças do apartheid, ele também era terno e vulnerável em sua compaixão por aqueles que sofreram opressão, a injustiça e a violência sob o apartheid, e pelas pessoas oprimidas ao redor do mundo", acrescentou.

Diagnosticado com câncer de próstata em 1997, Tutu foi hospitalizado várias vezes nos últimos cinco anos, em decorrência de infecções associadas à doença. Sua última aparição pública ocorreu em outubro, nas celebrações de seus 90 anos. Em uma cadeira de rodas, o primeiro arcebispo anglicano negro da África do Sul compareceu a um serviço religioso na catedral de São Jorge, onde pregou durante muito tempo.

Cinco meses antes, havia sido visto após receber uma dose da vacina anticovid. Na ocasião, conclamou os sul-africanos a se imunizarem: "Não há nada a temer. Não deixem a covid-19 continuar a devastar nosso país, ou nosso mundo. Vacinem-se."

Legado

Líderes e personalidades de todo o mundo prestaram homenagens. "Desmond Tutu foi um mentor, um amigo e uma bússola moral, para mim e para tantos outros", destacou o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, outro prêmio Nobel da Paz. O democrata Joe Biden, atual chefe da Casa Branca, exaltou a trajetória do religioso. "Desmond Tutu seguiu sua vocação para criar um mundo melhor, mais livre e mais igualitário. Seu legado transcende fronteiras e ecoará por gerações", assinalou.

O presidente do Conselho Europeu, em representação dos 27 países da União Europeia, Charles Michel, reverenciou o "grande homem que deu a sua vida pela liberdade com um profundo compromisso com a dignidade humana", enquanto o primeiro-ministro britânico Boris Johnson o chamou de "figura crítica na luta para criar uma nova África do Sul".

A rainha Elizabeth II disse estar "profundamente entristecida" com a morte do arcebispo emérito, enquanto o papa Francisco destacou seu papel na "promoção da igualdade racial e da reconciliação". Amigo de longa data de Tutu, o dalai Lama elogiou "um grande homem inteiramente dedicado ao serviço de seus irmãos e irmãs".

Desmond Tutu ganhou fama nos momentos mais complicados do apartheid quando, como líder religioso, comandou passeatas pacíficas contra a segregação e para pedir sanções contra o regime de supremacia branca. Viajou diversas vezes aos Estados Unidos e a países europeus para encontros com líderes mundiais, nos quais pedia punições para a África do Sul. Mas também promoveu negociações para por fim à política de segregação racial no país. Ao contrário de outros ativistas da época, sua posição o salvou de ser preso.

Tutu foi grande amigo de Nelson Mandela, que, em 1994, dividiu um Nobel da Paz com o último presidente do apartheid, Frederick de Klerk, por contribuir com o fim do regime racista. Por algum tempo, eles foram vizinhos no Soweto.

Fiel a seus compromissos, Desmond Tutu foi um duro crítico dos sucessivos governos do Congresso Nacional Africano (ANC na sigla em inglês), movimento e partido que lutou contra o apartheid antes de chegar ao poder. Ele também criticou o ex-presidente Thabo Mbeki, sucessor de Mandela, assim como a corrupção e as falhas na luta contra a aids.

Após a chegada da democracia, em 1994, Desmond Tutu, que criou o termo Nação Arco-Íris para a África do Sul, presidiu a Comissão da Verdade e da Reconciliação (CVR), criada com a esperança de virar a página do ódio racial.

A Fundação Mandela considerou a morte de Tutu como uma "perda incomensurável". "Para tantas pessoas na África do Sul e no mundo inteiro, sua vida foi uma bênção", assinalou a entidade.

Homenagens póstumas também foram divulgadas pelo grupo de personalidades conhecido como The Elders, uma organização criada em 2007 por Mandela e da qual Tutu foi o primeiro presidente. "The Elders perderam um amigo querido, com um sorriso contagioso e senso de humor travesso que encantaram a todos. O mundo perdeu uma inspiração — mas cujas realizações nunca serão esquecidas."

Em 2016, num artigo publicado no jornal The Washington Post, Desmond Tutu deu sinais sobre seu estado de saúde. "Eu me preparei para minha morte e deixei claro que não desejo ser mantido vivo a qualquer custo", assinalou. "Espero ser tratado com compaixão e ter permissão para passar à próxima fase da jornada da vida da maneira que escolhi", completou.

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AFP - Memorial na Catedral de São Jorge, na Cidade do Cabo