Em um gesto para tranquilizar o país e em um aceno à democracia, o presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, visitou ontem Elisa Loncon, líder da Convenção Constituinte, e assegurou que o órgão terá absoluta autonomia para redigir a nova Carta Magna — documento visto como uma ruptura em relação à herança política do general Augusto Pinochet.
"Não vou tentar pautar a Convenção com o que ela tem que fazer, apenas respeitar e implementar o que deliberativamente for decidido aqui", declarou Boric, 35 anos, o líder mais jovem da história do Chile. Ele reforçou que o trabalho da Convenção é um tema de Estado, de longo prazo. "Todos temos que dar o melhor de nós mesmos, independentemente de nossas diferenças políticas, para que este processo tenha sucesso, porque, se a Convenção for bem, o Chile se sairá bem", disse.
A nova Constituição começou a surgir em 15 de novembro de 2019, depois que Boric firmou um acordo entre as diversas correntes políticas do Chile, à exceção do Partido Comunista. A Carta Magna foi uma espécie de solução institucional após manifestações de outubro daquele ano, as quais deixaram 34 mortos. O texto precisará ser submetido a plebiscito de voto obrigatório.
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Cruzada antifascista
Em entrevista ao Correio, Alicia Lira Matus, 73 anos, presidente da Associação de Familiares de Executados Políticos do Chile (Afep), disse que o triunfo de Boric se deu graças a milhares de pessoas que se somaram em uma cruzada antifascista. "A votação pela coalizão Apruebo Dignidad, de Boric, foi um sinal de que não poderíamos ter um retrocesso tão atroz, com a ultradireita no governo. Como familiar de vítimas e como cidadã, estou alerta. Não queremos confiar plenamente em Boric. Durante 31 anos, os temas das aposentadorias, da verdade e justiça, e do meio ambiente ficaram sem mudanças reais", afirmou a ativista. O irmão de Alicia sofreu tortura, e o marido dela foi sequestrado e executado com 13 tiros em 8 de setembro de 1986, no regime de Pinochet. Ela teme que setores conservadores tentem colocar travas no programa de governo progressista de Boric.
Segundo Alicia, a derrota de José Antonio Kast se explica pelo fato de que o ultradireitista pretendia reeditar partes da ditadura cívico-militar. "Ele defendia uma rede internacional para deter policiais em locais sigilosos. Isso seria um retrocesso. Kast queria retirar o voto feminino, ao pregar a inexistência do Ministério da Mulher. Ele também exigia manter na prisão por mais tempo os jovens detidos na revolta popular de 2019. Creio que a direita lamenta profundamente a coalizão feita com Kast", comentou.