Gabriel Boric, 35 anos, o presidente eleito mais jovem da história do Chile, somente tomará posse em 11 de março, quando o país consolidará a guinada da direita para a esquerda. No dia seguinte à vitória sobre o ultradireitista José Antonio Kast, Boric visitou, ontem, o Palácio de La Moneda, onde se reuniu com o atual chefe de Estado, Sebastián Piñera (direita). O anfitrião prometeu que o novo ocupante da cadeira presidencial terá a "total colaboração construtiva" do atual governo. Boric e Piñera mantiveram uma reunião privada por cerca de 30 minutos, na qual discutiram temas de Estado, assuntos internacionais e violações dos direitos humanos, segundo o jornal El Mercurio.
Boric externou ao atual presidente sua preocupação em relação à impunidade dos crimes ocorridos durante o regime do general Augusto Pinochet e "das graves violações aos direitos humanos" ocorridas durante o levante social de outubro de 2019. O presidente eleito prometeu acelerar a definição de seu gabinete, em resposta às incertezas do mercado, que entrou em pânico depois da vitória do candidato da esquerda.
O peso chileno fechou o dia com uma desvalorização de 3,4%, para 876 pesos por dólar, seu maior valor histórico, enquanto a Bolsa de Valores de Santiago teve queda de 6,18% em seu principal indicador, o IPSA. Até o fechamento desta edição, com 99,99% das urnas apuradas, Boric tinha 55,87% dos votos contra 44,13% para Kast. A diferença de mais de 11 pontos percentuais também causou apreensão no mercado.
Para Marcelo Mella, cientista político da Universidad de Santiago de Chile, Boric enfrentará dois tipos de desafios depois de assumir o poder. "O primeiro, de curto prazo, corresponde a decisões que ele precisará tomar de maneira muito urgente para responder à crise sociopolítica chilena e aos efeitos da pandemia da covid-19. Por exemplo, o governo Boric terá que decidir rapidamente sobre os gastos públicos suportados pelo governo. O aumento desses gastos contribui com um deficit fiscal nunca visto desde 1989", afirmou ao Correio. "O segundo desafio é restabelecer a ordem em certas regiões do país, onde há elevados índices de violência, como a zona de Araucanía, onde o conflito mapuche se aprofundou."
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Tecnocratas
Mella também vê a necessidade de definições sobre a política migratória. A médio e a longo prazos, Boric precisará mediar a Convenção Constitucional, para que apresente um rascunho da Carta Magna em meados de 2022. Um grande desafio será reduzir o desemprego. O especialista acredita que o novo presidente nomeará para os ministérios vários políticos independentes e alguns tecnocratas da centro-esquerda. "Na configuração inicial, o governo Boric deverá ter orientação social-democrata. É muito provável que as pastas ligadas à Economia sejam ocupadas por pessoas com experiência no Estado", aposta.
Ainda de acordo com Mella, Boric terá pela frente dois riscos: o transbordamento de demandas, fruto de uma base de apoio muito diversa e de interesses amplo; e o fato de que a recuperação econômica ficará aquém do esperado em 2022. "O presidente Boric não poderá cumprir com as metas de arrecadação fiscal, de controle da inflação ou de criação de empregos."
Historiador da Universidad Austral de Chile (em Valdivia), Alberto Harambour explicou que a vitória de Boric é resultado da massiva mobilização eleitoral de grupos que dificilmente saíam para votar. "Teve gente que votou pela primeira vez, o que voltou a exercer o direito depois de muito medo, além daqueles que se identificam com a Frente Ampla e o Partido Comunista. Os adeptos da antiga Concertación — coalizão de partidos de esquerda, de centro-esquerda e de centro que governou o Chile de 1990 a 2010 — também se expressaram nas urnas, denunciando o esgotamento da Pax Neoliberal: 'Não são 30 pesos, são 30 anos', como dizia o slogan da revolta de outubro de 2019", afirmou à reportagem. "A eles somaram-se aqueles que sentem temor pela ultradireita, simpatizantes da ex-presidente Michelle Bachelet e militantes de partidos tradicionais da centro-esquerda."
Harambour prevê um gabinete com amplo espectro político, representativo das classes que estão por trás da mobilização eleitoral e social dos últimos anos. "Será um gabinete muito mais próximo da diversidade da Convenção Constituinte do que do conservadorismo do Senado", opinou. Ele aposta que o principal desafio do novo presidente será responder a demandas amplas e ambiciosas pela justiça social e apaziguar a recusa dos mais ricos em contribuir com arrecadação fiscal, além de empreender o funciomanento democrático das instituições. "Nesse equilíbrio, que deve resolver a favor dos mais pobres e excluídos, está a grande tensão de Boric", disse.