O esquerdista Gabriel Boric, de apenas 35 anos, será o novo presidente do Chile. O ex-líder estudantil, da frente de esquerda Apruebo Dignidad, surpreendeu e foi eleito com uma ampla vantagem de votos sobre seu opositor José Antonio Kast, da Frente Social Cristã, de direita. Com 99,88% das urnas apuradas, Boric recebeu 55,87% dos votos e, Kast 44,13%.
As pesquisas tinham indicado empate técnico, o que não ocorreu, e também não previam que Boric venceria em grande parte do país — ele ganhou em 11 das 16 regiões do Chile.
Mas, terminada uma eleição presidencial extremamente polarizada, o que esperar do novo presidente chileno?
Boric é definido, até por opositores, como "equilibrista" e "político de diálogo", mas terá um governo "desafiador".
Em suas primeiras declarações, na noite de domingo (19/12), o ex-líder estudantil disse que "a esperança venceu o medo" e sinalizou o rumo que pretende dar ao seu governo: com diálogo com os diferentes setores, buscando "crescimento com distribuição justa", maior espaço para as mulheres e o feminismo, maior cuidado com o meio ambiente e combatendo a impunidade e a corrupção.
Diante de uma multidão que comemorou sua eleição, Boric terminou o discurso de vitória, mandando "um abraço gigante" para todo o país.
Seus desafios a partir da posse, em 11 de março, serão "gigantescos", segundo políticos, analistas e observadores ouvidos pela BBC News Brasil.
Alguns deles são antigos, como o combate à desigualdade social; outros mais recentes, como a preocupação com o tráfico de drogas e casos de bala loca (bala perdida) em regiões pobres, além da insatisfação com o sistema de previdência social (as AFP, administradoras privadas de fundos de pensão) que geram aposentadorias minguadas após anos de contribuição.
Boric disse que implementará um "sistema público de previdência — e sem as AFPs". A proposta foi comemorada entre contribuintes, mas gerou tensão no setor financeiro.
"O primeiro desafio do presidente eleito será fazer um amplo acordo nacional para a questão da previdência dos chilenos. Os chilenos não aguentam mais essas aposentadorias", disse o senador José Manuel Ossandon, que apoiou Kast, e falou à BBC News Brasil pouco antes do discurso de Boric.
'Governo amplo'
O futuro presidente do Chile pretende realizar um governo "amplo", com a participação de vários partidos — o que será necessário para a aprovação de seus projetos no Congresso.
Boric costuma dizer que o país era apontado como "modelo" no continente, mas que era "um modelo em que poucos ganhavam", que não refletia a realidade nacional e onde a maioria da população passava sufoco.
O ex-líder estudantil tem sugerido que seu governo poderia caminhar rumo ao centro, a partir das alianças que fez na campanha do segundo turno, mas que isso dependerá "de sua habilidade", como disseram analistas, em convencer o Partido Comunista, que integra sua coalizão, da necessidade de um governo "amplo".
"Ou ele será um social-democrata e conseguirá aprovar seus projetos no Congresso ou seguirá as ideias do Partido Comunista, que defende estatizações, por exemplo, dos setores hídricos e de mineração, o que vai gerar dificuldades no Parlamento, fragmentado, e preocupação entre investidores privados", disse um observador estrangeiro em Santiago.
'Esperança e águas turbulentas'
Para o ex-candidato presidencial Marco Enriquez-Ominami, que apoiou Boric no segundo turno, este terá de lidar com o desafio de encontrar recursos para ajudar aos que mais sofreram com os efeitos da pandemia.
"Neste domingo, a esperança ganhou", disse. "Mas os primeiros desafios (do governo Boric) serão econômicos. A economia chilena conheceu os 'retiros' (saques bancários, autorizados pelo Congresso) dos fundos de pensões e também os programas sociais do presidente Piñera (na pandemia), que chegam a quase 20% do Produto Interno Bruto (PIB) e isso não existirá mais em 2022".
"Portanto, virão tempos muito difíceis. Mas tenho certeza que o futuro presidente Boric governará com amplidão e com inteligência por águas turbulentas", disse Ominami.
'Gastar a sola do sapato'
Observadores internacionais em Santiago apontam ainda para o que consideram ser uma comparação inadequada da imprensa, principalmente brasileira: entre Boric e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
"No Brasil, costuma-se dizer que Boric representa a esquerda radical ou o Lula (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) dos anos 1980. Esse raciocínio é equivocado. Boric tem diálogo com todos os setores da política. Seu desafio será mostrar que tem experiência para governar, apesar da pouca idade", disse uma fonte.
O presidente eleito disse que seu governo vai "gastar a sola do sapato", ouvindo as demandas dos chilenos nos vários cantos do território nacional. Boric acrescentou ainda que não governará "olhando o próprio espelho e ouvindo só quem pensa como ele" e que o palácio presidencial La Moneda "será aberto ao povo".
"Nosso governo conversará permanentemente com seu povo. O povo entrará no Palácio La Moneda. Hoje, a esperança venceu o medo. Estamos contentes, mas sabemos da responsabilidade que temos", disse no discurso da vitória diante de uma multidão.
Rosto das manifestações
Boric nasceu pouco antes da redemocratização do Chile, em 1990, após o fim da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Figura crucial nas manifestações recentes no país, Boric disse que, se eleito, gostaria que os chilenos saíssem às ruas para demonstrar sua insatisfação quando o governo não estivesse no rumo certo.
Aos 35 anos, é o presidente eleito mais novo do Chile e sua eleição resulta, segundo analistas, da participação de uma parte considerável da população no pleito, num país em que as últimas eleições presidenciais tinham sido marcadas por um grande desinteresse pela política.
Em um período de dez anos, Boric foi líder estudantil, um dos rostos emblemáticos das manifestações da história recente do Chile e eleito deputado duas vezes — atualmente, ele está no segundo mandato.
Seus amigos dizem que sua experiência como presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile (Fech) e seu estilo de liderar ouvindo diferentes setores, apoiadores e adversários acabaram trilhando seu caminho para a presidência do país.
Nascido e criado em Punta Arenas, no extremo sul do Chile, seu papel foi decisivo para a aprovação do plebiscito que criou a Assembleia Constituinte — que redige a primeira Constituição da democracia.
'Todas e todas'
"O fato de Boric ter sido eleito com mais de 50% dos votos, não significa que todos sejam de esquerda. Essa eleição surpreendente foi claramente resultado da esperanças por mudanças. Não foi uma eleição entre direita e esquerda", disse Guillermo Holzmann, professor de Ciências Políticas da Universidade de Valparaíso.
Boric tem repetido que governará "para todos os chilenos e todas as chilenas".
Holzmann observou, porém, que um de seus principais desafios será "garantir a governabilidade, passando credibilidade e transparência para a opinião pública" do país.
A coalizão de Boric, a Apruebo Dignidad, reflete as bandeiras das manifestações das quais fez parte — justiça social, feminismo, movimentos sociais, direitos dos povos originários, meio ambiente e o desafio da desigualdade social em um país que foi apontado como modelo econômico até as explosões ('estallidos', como eles dizem) das manifestações.
Em seu discurso de vitória, Boric também disse que as mudanças "virão passo a passo, degrau por degrau".
E surpreendeu alguns apoiadores ao dizer que, em seu governo, conversará, inclusive, com o candidato derrotado por ele, Kast.
A multidão ameaçou com uma vaia, mas ele fez um gesto pedindo silêncio, e disse que "nosso objetivo é o bem-estar dos chilenos e para isso precisaremos dialogar com todos os setores".
Boric, entretanto, demonstrou visível desconforto ao receber um telefonema de parabéns do atual e impopular presidente do Chile, Sebastián Piñera, de direita. O conteúdo da conversa foi transmitido pela imprensa chilena. Os dois falaram sobre a importância de um Chile republicano.
Quando Piñera parecia tentar lhe dizer o que significava ser presidente, Boric afirmou que "nosso governo será para todos os chilenos e todas as chilenas", antes de demonstrar ansiedade para desligar o telefone.
Boric é forte crítico da gestão atual, principalmente pela violenta repressão policial contra as manifestações no fim de 2019.
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