Em novembro de 2016, o presidente russo, Vladimir Putin, participava de uma cerimônia televisionada de premiação a estudantes de geografia, quando perguntou a um garoto de 9 anos onde terminavam as fronteiras da Rússia. O menino não se fez de rogado e respondeu: "No Estreito de Bering, perto dos Estados Unidos". Putin caiu na gargalhada e rebateu de forma reveladora. "As fronteiras da Rússia não acabam em lugar nenhum", afirmou, antes de acrescentar que era uma piada. Comparado a um czar por sua concentração de poder, Putin provavelmente se referiu ao caráter quase que onipresente da Rússia.
A influência do Kremlin ocorre por meio de ações oficiais, como as alianças polêmicas — com a Bielorrússia, de Alexander Lukashenko, ou a Venezuela, de Nicolás Maduro — e a pressão militar sobre a Ucrânia; e de ações clandestinas, como a utilização de hackers e de paramilitares. Moscou também é acusada de apoiar insurgentes na Síria e no leste da Ucrânia.
Há suspeitas de que o establishment russo recruta, ou ao menos apoia, mercenários em distintos conflitos armados, na Líbia, no Mali, na República Centro-Africana, no Sudão, no Zimbábue, em Angola, em Moçambique e em Guiné-Bissau.
As eleições presidenciais norte-americanas de 2016, que levaram o magnata republicano Donald Trump à Casa Branca, expuseram a ameaça cibernética. Hackers supostamente vinculados ao governo Putin teriam interferido no sistema eleitoral de uma das democracias mais sólidas do planeta. Durante encontro com Trump, em julho de 2018, Putin disse que "o Estado russo nunca interveio, e jamais intervirá, em assuntos internos dos Estados Unidos, incluindo o processo eleitoral". No entanto, as agências de inteligência de Washington coletaram informações que apontam o contrário.
Chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou), Lilia Shevtsova explicou ao Correio que, apesar de a Rússia tentar se firmar como ator global, ela carece de recursos para uma agenda substancial. "Dessa forma, temos visto esforços do Kremlin em vários países, mas sem muito sucesso. É assim que a Rússia preserva seu status de grande potência", afirmou. De acordo com Shevtsova, tudo é uma questão de política e de influência, além de dinheiro e de recursos, em alguns casos. "Mas não com a ideologia vista durante os tempos da União Soviética."
"Homens de verde"
Uma das facetas mais obscuras da influência russa sobre outros países envolve suspeitas em torno do chamado Grupo Wagner, que teria sido criado sob a fachada de empresa de segurança privada. Fundado pelo oligarca Yevgeny Prigozhin, ganhou holofote durante o conflito na Ucrânia, em 2014, quando seus membros eram conhecidos como "os pequenos homens de verde". A União Europeia (UE) acusa o Grupo Wagner de ter "implementado políticas que minam ou ameaçam a integridade territorial, a soberania e a independência da Ucrânia".
Na Síria, os mercenários teriam treinado e comandado as forças do presidente Bashar Al-Assad e as milícias aliadas do regime. Documentos obtidos pelo site Politico revelam que a UE prepara sanções contra oito pessoas e quatro entidades ligadas ao Grupo Wagner, suspeito de tortura e execuções sumárias.
Shevtsova admite que o Grupo Wagner age sob o escudo do Estado. "Ele empreende ações quando o Estado oficial não deseja intervir. Pode representar ameaça para outros países. Em algumas nações, entretanto, serve ao governo local como força de segurança." O think tank Carnegie Moscow Center referiu-se ao Grupo Wagner como "o segredo mais mal guardado da Rússia".
Em entrevista ao Correio, a croata Jelena Aparac — chefe do Grupo de Trabalho da Organização das Nações Unidas sobre o Uso de Mercenários — explicou que os cinco membros de sua equipe analisaram a guerra de guerrilha travada pelos "atores não estatais". Eles perceberam uma grande assimetria entre os protagonistas dos conflitos, e suas capacidades militares.
"Há uma demanda crescente por mercenários nos conflitos. Identificamos, com preocupação, vários atores com características de mercenários. Estão envoltos na obscuridade", observou. "Um deles é o Grupo Wagner. Relatos partilhados com o nosso Grupo de Trabalho sugerem que, em alguns casos, a facção foi comandada por ex-membros das Forças Armadas da Rússia. É difícil definir o Grupo Wagner como organização paramilitar, companhia militar privada ou força semiestatal."
Segundo Aparac, em 2018, jornalistas que investigavam a facção morreram em condições suspeitas. Ela salientou que o Grupo Wagner também pretende gerar lucro por meio de combates. "Em alguns casos, empresas de guerrilha privadas são contratadas por um Estado", observou.