CHILE

A esquerda no poder: Boric é o presidente mais jovem eleito no Chile

Aos 35 anos, Gabriel Boric abre vantagem na corrida ao Palácio de La Moneda e derrota o ultradireitista José Kast, tornando-se o mais jovem presidente eleito do país. No discurso da vitória, prega união nacional

Correio Braziliense
postado em 20/12/2021 06:00
 (crédito: AFP)
(crédito: AFP)

Ex-líder estudantil e mais jovem político a se candidatar à Presidência, Gabriel Boric, 35 anos, da Frente Ampla, de esquerda, é o novo presidente do Chile. Com uma ampla vantagem desde o início da abertura das urnas, Boric obteve quase 56% dos votos, 10 pontos percentuais a mais que o adversário, o ultradireitista José Antônio Kast. Ele chega ao Palácio de La Moneda com a tarefa de estabilizar a economia em um cenário de inflação galopante, reestruturar o quase falido sistema previdenciário e combater as desigualdades sociais, amplificadas pela pandemia de covid-19.

Outro desafio é unificar o país, tema que explorou no discurso da vitória, pouco antes das 22h. Boric agradeceu nominalmente a cada candidato à Presidência. Citando o oponente derrotado no segundo turno, ele disse que "tivemos diferenças, mas saberemos construir pontes com elas, para que nossos compatriotas possam viver melhor". Repetindo o que havia falado horas antes ao presidente Sebástian Piñera, o ex-líder estudantil afirmou: "Serei presidente de todos os chilenos e chilenas".

O esquerdista, que atualmente ocupa um assento na Câmara, também destacou o compromisso com o respeito à democracia, aos direitos humanos e à Justiça. "Que nunca mais tenhamos um presidente que entra em guerra contra seu povo", disse, em referência ao ex-ditador Augusto Pinochet. Boric repetiu o que vinha prometendo ao longo da campanha: crescimento e distribuição justa da riqueza, diminuição do abismo entre ricos e pobres, fortalecimento da educação e da saúde pública, reconhecimento dos direitos dos povos originais e criação de um sistema que valorize o trabalho da mulher, entre outros.

Com um discurso contra a economia neoliberal herdada de Pinochet e focado na defesa de direitos sociais, Boric chegou ao segundo turno 2,35 pontos percentuais atrás de Kast, 55 anos. Essa é a primeira vez que ocorre uma reviravolta do tipo na história eleitoral do Chile. 

Palco de manifestações constantes desde 2019, as ruas de Santiago foram tomadas por eleitores de Boric. Na capital e em outras cidades, eles começaram a comemorar a vitória ainda com metade das urnas apuradas, munidos de bandeiras do país, do Partido Comunista e da diversidade sexual.

Bastante emocionado no discurso de admissão da derrota, Kast afirmou que o Chile tem "grandes desafios" à frente. Embora tenha sugerido há duas semanas, em uma entrevista à TV, que as eleições poderiam ser definidas na Justiça caso a diferença de votos fosse estreita — o que não ocorreu —, o direitista adotou outro tom ao agradecer a seus eleitores. Disse que é hora de todos trabalharem juntos pelo país, apesar das divergências políticas. "Gabriel Boric merece todo o nosso respeito. Esperamos que faça um governo muito bom."

Conciliação

O presidente Sebastián Piñera também adotou o discurso conciliatório. No Palácio de La Moneda, disse que "Gabriel Boric será o presidente de todas as chilenas e de todos os chilenos; de todos que votaram e também de todos que não votaram". Destacando a força do processo democrático, Piñera afirmou que, com mais de 8 milhões de votantes, essa foi uma das eleições com maior participação da história do país, onde o voto é facultativo. Em conversa privada com Boric, por telefone, ele reforçou ao sucessor que "todos esperam muito de você".

Pelo twitter, vários líderes mundiais parabenizaram Gabriel Boric. "Fico feliz por mais uma vitória de um candidato democrata e progressista na nossa América Latina, para a construção de um futuro melhor para todos", escreveu Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente da Argentina, Alberto Fernández, também se manifestou na rede social. "Devemos assumir o compromisso de fortalecer os laços de irmandade que unem nossos países de trabalhar unidos à região para pôr fim à desigualdade na América Latina." A vice-presidente, Cristina Kirchner, por sua vez, assinalou que "o povo sempre volta e encontra os caminhos para fazê-lo. Pode ser um partido, um dirigente hoje e outro amanhã, mas o povo sempre volta".

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Namoro discreto

Reservada e discreta, Irina Karamanos, a namorada do presidente eleito, mantém sua conta do Instagram privada e fica constrangida quando questionada sobre Boric. A ativista feminista, porém, passou a aparecer mais no segundo turno, na tentativa de seduzir eleitores que exigem um candidato acompanhado, dizem analistas políticos. O casal está junto há dois anos e meio Uma dúvida é se ela assumirá o papel de primeira-dama. Irina chegou a dizer que renunciaria a ele. Ontem, porém, o presidente eleito só subiu ao palco para discursar quanto a namorada o acompanhou.

 

Múltiplos desafios

O novo governo assumirá o comando do Chile em março do próximo ano e encontrará pela frente uma série de desafios, além da economia e da polarização política: a implementação das regras da nova Constituição chilena, que começou a ser elaborada neste ano e pode entrar em vigor em 2022. A Carta Magna condicionará o mandato do próximo presidente, que começará a governar com as normas atuais e passará por uma verdadeira transição no país. O texto poderá, inclusive, tornar o governo provisório ou modificar sua forma, passando do atual regime presidencial para um semipresidencial, por exemplo.

A Convenção Constitucional que redige a nova Constituição é de maioria progressista. "A Convenção claramente está mais à esquerda que Boric", afirma Kenneth Bunker, analista político e fundador do site TresQuintos. "Ela é muito semelhante ao programa de Boric no primeiro turno, mas seu novo programa, apresentado para o segundo turno e trabalhado para mostrar moderação, o posicionou mais ao centro do que a Convenção."

De olho em conquistar os eleitores de centro, Boric vinha buscando moderação desde o fim do primeiro turno. "Boric adotou parte do discurso de Kast sobre 'ordem social' e teve que mudar o conceito de 'refundação', com o qual trabalhava, para o de 'reforma', com uma orientação mais social-democrata", afirmou o sociólogo do Centro de Estudios Publicos Aldo Mascareña.

A moderação pode ajudar a conquistar a governabilidade e unir o país. Boric não terá apoio suficiente para garantir maioria simples na Câmara dos Deputados. A aliança Aprovo Dignidade, pela qual se elegeu, alcançou apenas 37 cadeiras, bem abaixo dos 55 deputados necessários para garantir maioria simples. O bloco Fuerza Social Cristiana, que apoiou a candidatura de Kast, conquistou 15 vagas, e só poderia governar se construísse alianças com o Chile Podemos Más, dono de 53 cadeiras.

A inflação será outro grande problema. O país está sob pressão há meses e o orçamento das famílias começa a ser atingido. O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Chile subiu 0,5% em novembro, acumulando 6,3% neste ano e 6,7% em 12 meses, no maior nível desde dezembro de 2008.

Na semana passada, o Banco Central acelerou a retirada de estímulo monetário e elevou a taxa básica de juros em 125 pontos, maior índice desde 2014, para tentar conter a inflação. A previsão, informou o Banco Central, é de que a economia cresça entre 1,5% e 2,5% em 2022 e 1,0% em 2023.

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