"Pode parecer estranho para algumas pessoas viver em cima de um cemitério, mas nós estamos acostumados", afirma Ana Maria Nieto, que vive na cidade portuária de Arica, no Chile.
A localidade na fronteira com o Peru foi construída sobre as dunas arenosas do deserto do Atacama, o mais seco do mundo. Mas, muito antes da fundação dessa cidade costeira no século 16, esta área foi o lar do povo chinchorro.
Sua cultura chegou aos noticiários em julho de 2021, quando a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) incluiu centenas de múmias preservadas pelos chinchorro na sua Lista do Patrimônio Mundial.
As múmias dos chinchorro foram documentadas pela primeira vez em 1917, pelo arqueólogo alemão Max Uhle, que havia encontrado alguns dos corpos preservados em uma praia. Mas levou décadas de pesquisas para determinar a sua idade.
Datação por radiocarbono demonstrou que as múmias tinham mais de 7.000 anos de idade — dois milênios a mais que as conhecidas múmias egípcias.
Isso faz com que as múmias dos chinchorro sejam a mais antiga evidência arqueológica conhecida de corpos mumificados artificialmente.
A cultura chinchorro
- Cultura pré-cerâmica que durou de 7000 a 1500 a.C.
- Pescadores e caçadores-coletores sedentários.
- Viveram no que hoje é o extremo norte do Chile e o sul do Peru.
- Mumificavam seus mortos de forma sofisticada e inspiradora.
- Acredita-se que a mumificação começou como forma de manter viva a memória dos mortos.
O antropólogo Bernardo Arriaza, especialista no povo chinchorro, afirma que eles praticavam a mumificação intencionalmente. Isso significa que eles empregavam práticas mortuárias para conservar os corpos, em vez de permitir que eles se mumificassem naturalmente no clima seco — embora alguns corpos mumificados naturalmente também tenham sido encontrados no local.
Pequenas incisões eram feitas nos corpos, os órgãos eram retirados e as cavidades eram secas, enquanto a pele era arrancada, explica Arriaza. Os chinchorro então preenchiam o corpo com fibras naturais e gravetos para mantê-lo reto e usavam varetas para costurar a pele de volta.
Eles também aplicavam espessos cabelos pretos à cabeça da múmia e cobriam seu rosto com argila e uma máscara com aberturas para os olhos e a boca.
Por fim, o corpo era pintado de vermelho ou preto característico, utilizando pigmentos minerais, como ocre, manganês e óxido de ferro.
A abordagem e os métodos de mumificação dos chinchorro eram claramente diferentes dos egípcios, segundo Arriaza. Os egípcios não só utilizavam óleo e bandagens, mas a mumificação era também reservada para os mortos da elite. Já os chinchorro mumificavam homens, mulheres, crianças, bebês e até fetos, independentemente da sua posição social.
Viver com os mortos
Com as centenas de múmias encontradas em Arica e em outros locais no último século, os habitantes locais aprenderam a viver ao lado dos restos mortais — e, às vezes, sobre eles.
A descoberta de restos humanos durante trabalhos de construção ou quando um cão fareja e desenterra partes de uma múmia é algo vivido por gerações de nativos. Mas eles passaram muito tempo sem compreender a importância desses restos mortais.
"Às vezes, os moradores nos contam histórias de crianças que usaram os crânios como bolas de futebol e como elas retiravam as roupas das múmias, mas agora eles sabem que devem nos informar quando encontrarem alguma coisa, sem mexer no local", diz a arqueóloga Jannina Campos Fuentes.
As habitantes locais Ana Maria Nieto e Paola Pimentel estão entusiasmadas pelo fato da Unesco ter reconhecido a importância da cultura chinchorro.
As duas mulheres lideram associações de moradores próximos a dois locais de escavação e vêm trabalhando em conjunto com um grupo de cientistas da Universidade de Tarapacá para ajudar a comunidade a compreender a importância da cultura chinchorro e garantir que os preciosos sítios arqueológicos sejam bem cuidados.
Existem novos planos para um museu na região — onde grupos de restos mortais dos chinchorro repousam sob vidro reforçado para serem observados pelos visitantes — a fim de oferecer uma nova experiência interativa. A ideia é treinar os habitantes locais para que se tornem guias e possam mostrar a sua herança para outras pessoas.
Atualmente, apenas uma parte muito pequena das mais de 300 múmias chinchorro encontra-se em exibição. A maioria delas está abrigada no Museu Arqueológico de San Miguel de Azapa.
O museu, de propriedade da Universidade de Tarapacá, que também o administra, fica a 30 minutos de carro de Arica e oferece exposições impressionantes que mostram o processo de mumificação.
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Um museu maior está sendo planejado no local para abrigar maior quantidade de múmias, mas também são necessários recursos para garantir que elas sejam preservadas corretamente e não se deteriorem.
Arriaza e a arqueóloga Jannina Campos estão também convencidos de que Arica e seus morros vizinhos ainda escondem muitos tesouros a serem descobertos. Mas são necessários mais recursos para encontrá-los.
O prefeito de Arica, Gerardo Espíndola Rojas, espera que a inclusão das múmias na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco incentive o turismo e atraia mais recursos financeiros.
Mas ele sabe que tudo deve se desenvolver de maneira correta, trabalhando com a comunidade e preservando os sítios arqueológicos.
"Diferentemente de Roma, que construiu sobre monumentos, os habitantes de Arica vivem sobre restos humanos e precisamos proteger as múmias", afirma o prefeito.
Existem leis de planejamento urbano em vigor e os arqueólogos estão presentes sempre que são conduzidos trabalhos de construção, segundo ele, para garantir que os restos preciosos não sejam perdidos.
Espíndola também é categórico ao afirmar que, diferentemente de outras partes do Chile, onde operadoras de turismo e companhias multinacionais compraram terras para lucrar com os locais turísticos, o patrimônio de Arica deve permanecer nas mãos dos seus habitantes e beneficiar a comunidade local.
A presidente da associação de moradores, Ana Maria Nieto, está confiante de que a recente fama das múmias favorecerá a todos. "Esta é uma cidade pequena, mas amistosa. Queremos que turistas e cientistas de todo o mundo venham aprender sobre a incrível cultura chinchorro que nos acompanha por toda a vida", conclui ela.
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