Crime

Jimmy 'Barbecue', o ex-policial que virou criminoso prometendo 'revolução' no Haiti

Cherizier já cruzava a linha que separa os lados opostos da lei na sua época de agente de polícia

BBC
Guillermo D. Olmo - BBC News Mundo
postado em 08/12/2021 10:09
 (crédito: Pierre Michel Jean)
(crédito: Pierre Michel Jean)


Em um país sem lei, ele impõe a sua.

Jimmy Cherizier é o líder criminoso mais temido do Haiti. Mas ele é mais conhecido como Jimmy "Barbecue" ("churrasco", em inglês).

O apelido veio, segundo ele, porque sua família gerenciava um negócio de carne assada. Mas, segundo testemunhas da violência haitiana, ele tem o hábito de queimar as casas e os cadáveres de suas vítimas.

Cherizier começou como agente de polícia, mas hoje é o líder do grupo chamado G-9 e Família, uma aliança que reúne algumas das facções mais perigosas em um dos países mais perigosos do mundo.

Ao lado de outras organizações criminais poderosas - entre elas, a denominada 400 Mawozo, a quem se atribui o recente sequestro de um grupo de 17 missionários norte-americanos e canadenses no Haiti -, o G9 e Família contribuiu para o caos que se apossou do país caribenho, agravado pelo assassinato do presidente haitiano, Jovenel Moïse, em julho passado.

A morte do presidente parece ter enfurecido "Barbecue", que agora ameaça conduzir sua organização para uma "revolução" contra a elite política "corrupta" do país.

Até o momento, nenhuma autoridade do seu país e nem as sanções impostas contra ele pelos Estados Unidos impediram Cherizier de concretizar suas ações.

De agente de polícia a criminoso

Natural da capital do Haiti, Porto Príncipe, Cherizier já cruzava a linha que separa os lados opostos da lei na sua época de agente de polícia.

Atribui-se a ele participação na morte de nove civis ocorrida durante uma operação tida como oficial contra as organizações criminosas de Grand Ravine, um bairro de Porto Príncipe, em 2017.

"A polícia haitiana está infiltrada por elementos de quadrilhas e grupos que agem fora da lei", segundo Jeremy McDermott, do centro de estudos sobre o crime organizado InSight Crime.

Policia parado em esquina no Haiti
RICARDO ARDUENGO / Getty
A polícia haitiana conta com poucos recursos e sofre muita infiltração das facções criminosas

A primeira facção chefiada por "Barbecue" chamava-se Delmas 6, que controlava diversas zonas de Porto Príncipe. Segundo informes internacionais, Cherizier serviu-se da conivência de membros do governo de Moïse para ampliar seu poder e influência.

"As facções criminosas são mais bem equipadas que a polícia e contam com a proteção das autoridades", segundo declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) Pierre Esperance, diretor da ONG haitiana Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos.

Um relatório do Grupo Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, publicado pouco antes do assassinato de Moïse, concluiu que, durante seu mandato, "facções armadas realizaram, com aprovação do Estado, violentos ataques contra civis em bairros pobres de Porto Príncipe", como tentativa de "esmagar os dissidentes".

O governo de Moïse negou qualquer relação com as facções criminosas. A BBC News Mundo enviou um pedido de comentários ao partido de Moïse, mas não recebeu resposta.

Jovenel Moïse
NICHOLAS KAMM / Getty
Relatórios afirmam que o governo do presidente Moïse, assassinado em julho, mantinha ligações com as facções de "Barbecue"

O narcotráfico, o sequestro de carregamentos de combustível - em falta no país - e outros delitos possibilitaram que a organização de Cherizier atingisse seu auge. Hoje ela é principalmente financiada pela extorsão.

'Crimes contra a humanidade'

É atribuída a Cherizier participação em três massacres perpetrados nos últimos anos, que deixaram centenas de mortos em algumas das zonas mais pobres de Porto Príncipe.

Cherizier negou sua participação nesses eventos, mas Joey Bui, advogada e uma das autoras do relatório de Harvard, declarou à BBC News Mundo que ele "esteve envolvido como líder nos três ataques".

Segundo Bui, "é de conhecimento público que ele perpetrou esses massacres, mas nunca respondeu perante as autoridades". Já Esperance conclui que "existe no Haiti total impunidade para as facções criminosas e nunca foi realizado um esforço para capturar ou levar à justiça os responsáveis pelos massacres".

O governo dos Estados Unidos estabeleceu sanções contra Cherizier em 2018 pela sua participação na morte de civis.

Segundo os especialistas de Harvard, os massacres atribuídos a Cherizier reúnem as condições para serem considerados crimes contra a humanidade para investigação pelo Tribunal Penal Internacional.

O primeiro deles ocorreu em novembro de 2018 em La Saline, um bairro de Porto Príncipe onde houve muita atividade durante os protestos contra o governo de Moïse. O ataque ocorrido em La Saline entre 13 e 14 de novembro daquele ano durou 14 horas. As vítimas foram retiradas das suas casas, incluindo as crianças, e executadas a tiros de pistola ou golpes de faca. Pelo menos 71 pessoas morreram e 11 mulheres foram violentadas.

Um ano mais tarde, o bairro de Bel-Air, que havia erguido barricadas e bloqueado ruas como parte de protestos deflagrados em todo o país, sofreu uma investida similar de grupos armados vinculados a Cherizier. O saldo foi de pelo menos 24 mortos.

Mesmo com os chamados dos moradores, a polícia não se dirigiu ao local, o que fez com que muitas pessoas suspeitassem de conivência oficial.

Mas o maior dos massacres foi o último, ocorrido entre maio e julho de 2020, quando já estava formada a aliança criminal G9 e Família. Em Cité Soleil, um bairro muito pobre nas vizinhanças da capital, pelo menos 145 civis morreram, várias mulheres foram violentadas e muitas casas foram queimadas. Os moradores locais interpretaram o ataque como represália pela sua desaprovação ao governo.

Homem em uma rua de Cite Soleil.
Getty Images
Cité Soleil foi o cenário do maior dos massacres atribuídos a Cherizier

Segundo Joey Bui, "Cherizier nunca pagou pelo que fez".

Existem testemunhas que afirmam que, mesmo depois da emissão de uma ordem de prisão contra Cherizier, as próprias forças de segurança entregavam para ele pacotes de ajuda para distribuição nos bairros sob seu controle.

Qual é agora a proposta de Cherizier?

O assassinato do presidente Moïse, que ampliou o poder de "Barbecue" durante seu mandato, mudou o panorama.

Cherizier agora busca visibilidade com presença nas redes sociais, apresentando convocações contra o primeiro-ministro Ariel Henry, que assumiu o governo após a morte de Moïse com o compromisso de celebrar eleições o mais breve possível.

Os detratores do atual governante acusam Henry de estar por trás do plano para matar o presidente, sem que haja provas para isso. As investigações para esclarecer o crime prosseguem, enquanto Cherizier lidera o coro dos que declararam guerra ao primeiro-ministro.

Homem segura arma
Getty Images
As facções criminosas permanecem à solta em um Haiti sem governo

O Haiti deve realizar novas eleições para resolver o vazio de poder e a crise institucional, ambos agravados pelo assassinato do seu presidente, mas a insegurança e o poder das facções criminosas, por enquanto, impossibilitam esse objetivo.

"Pode-se afirmar que o Haiti atualmente é um Estado falido, onde a polícia está muito infiltrada pelo submundo", segundo Jeremy McDermott. Nesse contexto, "o risco é que os grupos criminosos tentem ocupar espaços políticos".

Pierre Michel Jean / Getty
"Barbecue" apresenta-se como defensor dos desfavorecidos

Com seus chamados à "revolução", suas polêmicas contra os políticos e tentativas de apresentar-se como benfeitor das comunidades dos bairros controlados pelas suas hostes, "Barbecue" dá mostras de simpatizar com essa ideia.

Mas os grupos criminosos rivais do G-9 e Família de Cherizier poderiam ter o mesmo objetivo e transferir para a política seus habituais enfrentamentos nas ruas de um país onde as mortes violentas ocorrem quase diariamente.

"Nossa preocupação é que, nas circunstâncias atuais, é praticamente impossível para qualquer político honesto fazer campanha em Porto Príncipe e na maior parte do interior do país", conclui McDermott.


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