Em um novo ato na escalada de tensões entre Estados Unidos e China, os americanos anunciaram nesta segunda-feira, (6/12) que farão um boicote diplomático aos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Inverno em Pequim, em 2022.
A medida significa que os EUA não enviarão uma representação diplomática ao país especialmente para a competição e que nem o presidente americano Joe Biden, ou qualquer outra alta autoridade americana, irá à capital chinesa em fevereiro.
Mas a delegação de atletas americanos deverá se apresentar completa e disputar medalhas normalmente.
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Como os EUA já possuem forte presença diplomática no país, em termos práticos, caberá aos funcionários em postos locais de consulados e embaixadas lidar com assuntos relacionados aos esportistas durante os Jogos.
"Da nossa parte, o que anunciamos é que não enviaremos qualquer diplomata ou representação oficial devido ao genocídio e crimes contra a humanidade cometidos em Xinjiang pela República Popular da China. Em face das atrocidades em curso, não mandaremos representantes que sinalizem que esses jogos são apenas 'uma ocorrência normal'", afirmou Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, o ministério das relações exteriores de Washington.
Embora houvesse pressão de parte dos congressistas por medidas mais duras - que incluíssem até mesmo a exclusão dos atletas americanos das disputas por medalhas,- a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, destacou que a adoção de "um boicote diplomático permitirá aos EUA apoiar os atletas olímpicos que trabalharam duro para competir nos jogos internacionais, mas não mostrar apoio político em contenciosos com a China. O time americano terá nosso integral apoio".
Em resposta, a China prometeu "firmes contramedidas". "Quero enfatizar que as Olimpíadas de Inverno não são um palco para posicionamentos ou manipulações políticas", disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian.
Especialistas em relações EUA e China tentam agora entender qual pode ser o impacto dos movimentos recentes dos dois países no relacionamento das duas nações no futuro.
"Não acho que isso vá alterar significativamente o relacionamento porque a essa altura ele já está muito ruim. É o pior que já vi desde que fui à China pela primeira vez, em 1989. Naquele momento, a relação não era muito boa. Mas acho que está pior agora, em parte porque há mais em jogo", afirmou a cientista política Mary Gallagher, especialista em política chinesa da Universidade de Michigan.
Segundo ela, embora em 1989 tenha havido o icônico massacre da Praça da Paz Celestial, quando o governo comunista chinês reprimiu duramente protestos pela abertura política, o que levou a embargos de armas e manutenção de restrições ao comércio por parte dos EUA, as economias dos dois países não estavam tão intrinsecamente ligadas - como concorrentes e codependentes - como agora.
Boicote com apoio bipartidário
A possibilidade de algum tipo de boicote às Olimpíadas vinha sendo discutida ao longo de todo ano de 2021 nos EUA. No último dia do governo republicano de Donald Trump, o então secretário de Estado, Mike Pompeo, declarou que a China cometia genocídio e crimes contra a humanidade contra os Uigures, um grupo étnico muçulmano que habita a região chinesa de Xinjiang.
Ao dar esse passo, o governo americano se tornou o primeiro Estado a usar tais termos para descrever as ações tomadas pelo governo chinês contra a etnia nos últimos anos, e que incluem detenção arbitrária e em massa de milhões de pessoas na região, esterilizações forçadas e repressão à liberdade religiosa do grupo.
A China reagiu, qualificando como "ações loucas" as palavras de Pompeo e dizendo que elas "perturbavam seriamente as relações EUA-China".
Em um raro ato de continuidade entre as duas gestões americanas, no entanto, o recém-empossado presidente democrata Joe Biden falou sobre o tema com seu colega chinês Xi Jinping na primeira conversa telefônica de ambos e o novo secretário de Estado, Anthony Blinken, endossou as palavras do antecessor menos de dois meses após chegar a Washington.
Em em julho, uma comissão bipartidária de congressistas enviou uma carta ao Comitê Olímpico Internacional (COI) para dizer que que nenhuma Olimpíada deveria ser realizada em um país "cujo governo está cometendo genocídio e crimes contra a humanidade" e que "não temos visto evidências de que o COI tenha tomado quaisquer medidas para pressionar o governo chinês a mudar seu comportamento" em relação aos Uigures e outras minorias. Nesta segunda, o COI afirmou que "respeita" a decisão americana.
"É importante entender o que nos trouxe a este ponto. A decisão de Biden pelo boicote diplomático foi o resultado de duas coisas. Primeiro, a sua posição muito precoce e bastante agressiva em relação à questão dos direitos humanos na China, que estabeleceu um limite elevado de ações sobre o tema. O segundo é uma pressão política bastante substancial. Deve-se notar que, se a Casa Branca não tivesse tomado essa iniciativa, os membros do Congresso poderiam empurrar a situação para um resultado semelhante", explica Clayton Allen, diretor de Estados Unidos da consultoria política Eurasia Group.
Em agosto, uma pesquisa publicada pelo site americano Axios mostrou que metade dos americanos gostaria que a Olimpíada não acontecesse na China.
No início de novembro, um episódio aparentemente individual e isolado adicionou ao cenário geopolítico um elemento que parece ter desequilibrado a opinião pública americana contra a China e ter sido decisivo para a decisão de Biden agora.
A estrela do tênis e medalhista olímpica chinesa Peng Shuai afirmou em seu perfil de rede social chinesa Weibo que foi abusada sexualmente pelo ex-vice premiê Zhang Gaoli, ex-integrante do comitê permanente do Politburo, a cúpula de poder do Partido Comunista Chinês.
Depois de Shuai fazer a denúncia, a postagem desapareceu, seus perfis silenciaram e ela deixou de ser vista publicamente por semanas. Desde então, Peng Shuai reapareceu pontualmente em interações consideradas controladas por organismos como a Associação Feminina de Tênis (WTA, na sigla em inglês), que na semana passada anunciou a suspensão de seus torneios na China, decisão que poderá acarretar em perdas milionárias para o grupo.
"Embora nós agora saibamos onde Peng está, eu tenho sérias dúvidas se ela está livre, em segurança e não sendo submetida à censura, coerção e intimidação", afirmou em comunicado o CEO da WTA, Steven Simon.
"Até recentemente, não havia muito apetite nem mesmo para um boicote diplomático. Mas acho que o tratamento dispensado à Peng Shuai teve um efeito galvanizador na opinião pública fora da China, em parte porque acho que as pessoas nos EUA prestaram mais atenção a essa questão. O público em geral pode não se importar muito com as notícias relacionadas à detenção em massa em Xinjiang e também à repressão em Hong Kong"diz Gallagher.
A especialista nota, porém, que a ação de Biden não deve ter surpreendido Pequim, que já tinha de alguma forma precificado o boicote.
"Um boicote diplomático é provavelmente politicamente mais aceitável porque o governo chinês entende que isso é realmente feito para a opinião pública doméstica", diz Gallagher.
O convite dos EUA à Taiwan que irritou a China
Um complicador para as análises sobre como o boicote assentará no comando do Partido Comunista Chinês é o fato de que o anúncio da medida acontece na mesma semana em que Biden fará sua Cúpula da Democracia - evento para o qual convidou 110 líderes mundiais para discutir como reforçar estruturas democráticas e defender direitos humanos e liberdades individuais. Entre os convidados, Biden chamou lideranças políticas de Taiwan, que a China não considera como uma nação independente e sim como parte do país.
"Até certo ponto, a cúpula é uma forma de falar (mal) sobre a China e a Rússia. Mas também reconhece que vivemos em um ambiente global no qual o poder está mais disperso e no qual as potências globais emergentes têm diferentes maneiras de administrar sua vida política . E a preocupação do governo Biden é que a democracia, para ser forma dominante de governança, tem que mostrar que pode se defender globalmente", afirmou à BBC News Brasil o ex-subsecretário do Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental Thomas Shannon.
O movimento de Biden irritou Pequim. "O conluio entre as autoridades americanas e taiwanesas para fazer provocações e brincar com fogo é extremamente perigoso. Esforços para apoiar e encorajar as forças de "independência de Taiwan" e desafiar o princípio da China única é como tentar conter a maré com uma vassoura", afirmou Zhao, o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores chinês.
Por via diplomática, a China fez circular um documento cujo título era: "China, uma democracia que funciona". No texto, os chineses tentavam mostrar que são mais democráticos que os americanos porque são mais eficientes do que os EUA para satisfazer as necessidades da população.
"O convite à Taiwan é arriscado e provocativo. A pressão sobre Taiwan só vai aumentar e, de certa forma, os EUA provavelmente estão tornando a situação ali ainda mais difícil. Os chineses têm muitas alavancas econômicas que podem acionar para demonstrar seu descontentamento, e também podem fazer mais algumas ações militares, como os voos sobre Taiwan. Há muito espaço para erros de cálculo e um acidente que pode se transformar em algo muito, muito pior. Acho que essa é uma área em que os Estados Unidos e a China, mesmo sem intenção, podem acabar em algum tipo de conflito militar", afirma Gallagher.
A resposta chinesa
Para Allen, é difícil separar o impacto causado, por um lado, pelo boicote e, por outro, pelo convite a Taiwan. "A decisão americana de seguir adiante com isso deve reverter os esforços estabilizadores da retomada do diálogo entre Biden e a China", diz Allen.
Em meados de novembro, os dois presidentes tiveram um encontro virtual por quase 3 horas. Acertaram uma cooperação para reduzir a pressão sobre o preço do petróleo e iniciaram conversas sobre não-proliferação de armas.
Na COP-26, os dois países também demonstraram disposição de trabalhar juntos para combater o aquecimento global ao lançar um comunicado conjunto. Agora, dizem os analistas, todas essas iniciativas estão a perigo. E algum tipo de entendimento ou acordo sobre barreiras tarifárias se tornou mais improvável.
Pontualmente, os chineses podem ainda lançar mão de sanções simbólicas contra políticos ou ativistas americanos e, indiretamente, incentivar boicotes comerciais a alguma marca dos EUA.
Mas a força e o tipo de retaliação que os chineses devem produzir vai depender também dos movimentos de aliados americanos.
Os EUA esperam que ao menos o Canadá, a Austrália e o Reino Unido anunciem que se juntarão ao boicote diplomático lançado por eles. Se isso não acontecer, a posição americana frente à China ficará fragilizada. Mas, se além desses aliados, os americanos conseguirem trazer Japão ou Coreia para a ação - o que parece mais improvável - o impacto sobre os chineses seria significativamente maior. E sua resposta, talvez, mais inflamada.
Nesta segunda, o relatório da Eurasia Group feito pouco após o anúncio do boicote nota, no entanto, que a situação em que China e EUA estão inclui elementos que escapam ao controle dos dois governos.
Durante os jogos olímpicos, algum atleta do Ocidente pode tentar fazer um desagravo a Peng Shuai ou uma crítica à China. Uma fagulha que poderia levar a desconhecidos desfechos com impactos globais.
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