Memorial

Com a ajuda de japoneses, brasileiros constroem memorial para guardar as cinzas de mortos no Japão

O Memorial Restart Community fica dentro de um cemitério na cidade de Hachioji. Tem capacidade para 200 urnas e já recebeu seis— uma delas é de um chinês - desde a inauguração em junho.

BBC
Fátima Kamata - De Tóquio (Japão) para a BBC Brasil
postado em 04/12/2021 13:20

Durante quase cem dias, a brasileira Ilda Yoshiko Higa cumpriu um ritual diário em sua casa no Japão.

Ao lado da urna com as cinzas do marido, Vitor Higa, falecido aos 88 anos, ela deixava oferendas, um copo de água e fazia a oração.

Seu desejo era voltar ao Brasil com os restos mortais dele, porém o destino acabou sendo outro.

No último sábado de novembro, as cinzas foram depositadas no mausoléu construído na região de Tóquio para receber principalmente os restos mortais de brasileiros.

O Memorial Restart Community fica dentro de um cemitério na cidade de Hachioji. Tem capacidade para 200 urnas e já recebeu seis— uma delas é de um chinês - desde a inauguração em junho.

"Para as famílias que não pensam mais em voltar para o Brasil, é um conforto saber que encontrará um lugar para o descanso final", diz Andrea, uma das filhas.

Ela trabalha como cuidadora de idosos, profissão que de certa forma ensinou-lhe a lidar melhor com a morte.

Com o falecimento do pai em agosto, também foi preciso aprender coisas práticas sobre o que fazer com os restos mortais.

No Japão, quase 100% dos mortos são cremados, e a urna com as cinzas é entregue aos familiares, após uma série de procedimentos (do funeral à cremação) que pode custar perto de R$ 100 mil.

Depois de um período que não ultrapassa 49 dias da morte, é tradição a urna ser colocada no túmulo da família, em monumentos verticais ou em covas coletivas, no caso de indigentes..

Os brasileiros têm preferido cremar seus mortos e levar as cinzas para serem enterradas no Brasil.

Porém, com a vinda da família completa ao Japão e a extensão do período de permanência no país, a preocupação recente é encontrar aqui um destino final aos mortos.

Um lugar para 'descansar em paz'

Hidekichi Hashimoto, um dos responsáveis pelo projeto do jazigo coletivo
Cortesia / Miguel Kamiunten
'Não fazemos discriminação de nacionalidade nem de religião', diz Hashimoto

Durante oito anos, a urna com os restos mortais do fotógrafo paranaense Akio Nakai, morto aos 75 anos de acidente vascular cerebral, ficou provisoriamente guardada em uma igreja cristã na cidade de Ota, na Província de Gunma, enquanto a família procurava um túmulo no Japão.

Quando soube do mausoléu, os familiares se tranquilizaram. As cinzas de Nakai foram as primeiras a chegar no local.

"Agora estamos mais tranquilos, porque ele (o sogro) se encontra em um espaço apropriado'', diz a nora Rosane Hanako.

"Não fazemos discriminação de nacionalidade nem de religião", explica o brasileiro Hidekichi Hashimoto, um dos responsáveis pelo projeto do mausoléu.

Desde quando lançou a ideia, ele cogitava incluir imigrantes, como seu avô Shigueta Hashimoto, que aos 14 anos deixou sozinho a cidade de Kurume, na Província de Hiroshima, para viver em solo brasileiro.

Trabalhou, formou família e morreu no Brasil há quase quatro décadas. "Mas sempre dizia que queria ser enterrado na terra natal."

Para financiar o projeto, Hashimoto conseguiu a adesão do japonês Takaharu Hayashi, que trabalhou com recrutamento de mão-de-obra brasileira e atualmente preside a ONG Japan Overseas Association, além da simpatia do monge Taido Ishige.

Ambos concordam que o desejo dos estrangeiros é ser enterrado em sua pátria, mas nem sempre as circunstâncias favorecem.

"Precisamos pelo menos assegurar um lugar onde as pessoas possam descansar com paz de espírito", diz o religioso.

O monge Ishige não esconde sua simpatia pelo Brasil, comprovada pelos vários carimbos no passaporte de viagens ao país.

Ele ocupava uma cadeira na Assembleia Legislativa do governo Metropolitano de Tóquio quando soube do projeto.

Essa combinação positiva de fatores resultou na cessão de uma área do cemitério Tama Hachioji Rein, de sua propriedade, para uso dos estrangeiros.

"Passei seis anos na Europa, por isso sei como é difícil viver em um país de cultura diferente", afirma.

Espaço multicultural

Os responsáveis pelo projeto do Memorial em Hachioji querem dar ao espaço um caráter multicultural e deixá-lo aberto a todos que dele necessitarem.

"Isso é muito importante, entender e respeitar o credo e a história de cada pessoa", diz o professor Miguel Kamiunten, apoiador do projeto.

Para Hashimoto, o pai da ideia, inaugurar o Memorial foi menos difícil do que está sendo sua atual missão de divulgar e reunir interessados.

Ele diz que dinheiro não é um impeditivo para quem pensa em guardar as cinzas do familiar no local, já que a taxa única cobrada é de aproximadamente R$ 2 mil, podendo sair de graça no caso de famílias sem renda.

"Na verdade, ninguém gosta de falar sobre a morte e muito menos planejar seu enterro. Mas temos que pensar e nos preparar para esse momento", afirma.

A dúvida de muitos brasileiros sobre quando concretizar a volta definitiva ao Brasil também atrapalha qualquer discussão sobre onde enterrar os ossos.

Mesmo após mais da metade da vida passada no Japão, a maioria ainda sonha em viver, se aposentar e ser enterrado no país natal.

No Japão há mais de 20 anos, com 6 filhos, 10 netos e 2 bisnetos, quase todos nascidos e crescidos aqui, a agora viúva Ilda Higa sonha com sua terra natal, Campo Grande.

"Posso colocar um pouco das cinzas do meu marido em uma caixinha e levar para o Brasil?", perguntou ela, após ter depositado a urna com os restos mortais do marido no mausoléu em Tóquio.

Esse é o mesmo sentimento das famílias que pediram ajuda a o pastor Gessival Barbosa, da Assembleia de Deus Ministério do Belém.

Ao longo de 20 anos, o religioso recebeu as cinzas de aproximadamente cem brasileiros.

Três urnas, entre elas a do fotógrafo Akio Nakai, foram enviadas ao Memorial em Tóquio. Porém, ainda resta uma dezena.

"Temos nossas limitações. Como há muitos desastres naturais no Japão, não posso ficar com muitas urnas aqui na igreja. Também é preciso garantir a segurança das pessoas que frequentam o local", diz.

Tampouco os consulados possuem competência legal para se responsabilizar pelos restos mortais de brasileiros falecidos no exterior ou providenciar sua repatriação.

Se não houver familiares ou conhecidos que possam cuidar dos procedimentos relativos ao óbito, as prefeituras locais costumam assumir esse papel.

Nesses casos, é comum elas guardarem a urna e contatar o consulado-geral para solicitar auxílio na localização de familiares, no Japão ou no Brasil, explica o vice-cônsul Luis Gustavo Frazão.

"Se as buscas forem em vão, os restos mortais serão tratados como os dos cidadãos japoneses que falecem na mesma situação: as cinzas serão encaminhadas coletivamente para um templo, a critério e sob responsabilidade da Prefeitura."

Morte solitária

Familiares depositam a urna com as cinzas de Vitor Higa durante cerimônia católica realizada dia 27 de novembro, em Tóquio
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Familiares depositam a urna com as cinzas de Vitor Higa durante cerimônia católica realizada dia 27 de novembro, em Tóquio

Não são poucos os japoneses nessas condições. Dados do governo revelam que entre abril de 2015 e março de 2021, 5.543 pessoas morreram sozinhas em casa e seus corpos foram descobertos muito tempo depois.

A morte solitária, conhecida como kodokushi, é mais frequente entre idosos, e está relacionada ao envelhecimento da população, o enfraquecimento das relações familiares e o agravamento da situação financeira.

As prefeituras arcam com os custos da cremação e com as urnas que ficam abandonadas.

Especialistas acreditam que esse problema vai ser maior, pois segundo previsões, as mortes no Japão deverão passar de 1,33 milhão por ano para 1,67 milhão até 2040.

No caso dos brasileiros no Japão, o número de óbitos também vem aumentando em decorrência do envelhecimento da comunidade.

Segundo dados do Ministério da Justiça, em 2020 havia 208.538 brasileiros residentes no país, e o total de mortes registradas nos três consulados-gerais do Brasil chegou a 269.

Em comparação, cinco anos antes foram 209 falecimentos para uma comunidade de 173.437 brasileiros.

O dilema de onde deixar os corpos também atormentou os japoneses que emigraram para o Brasil.

Na opinião de Hashimoto, os imigrantes só começaram a prosperar quando encontraram uma maneira digna de enterrar seus mortos.

"Creio que conosco está ocorrendo o mesmo. É fundamental definir em vida onde irá depositar suas cinzas", afirma.

É muito comum traçar paralelos entre a imigração japonesa no Brasil e a vinda maciça de brasileiros para trabalhar no Japão.

No que diz respeito aos mortos, os imigrantes não tiveram a escolha do retorno à terra natal um século atrás, mas conseguiram construir seu próprio cemitério.

O primeiro deles foi aberto na cidade de Álvares Machado (a 560 km de São Paulo), durante um surto de febre amarela.

A doença vitimou muitos imigrantes japoneses, inviabilizando as idas a pé para levar os corpos até o cemitério da cidade vizinha.

Os mortos passaram então a ser enterrados em uma área mais próxima de onde moravam.

Até ser fechado em 1940, foram sepultados 783 japoneses e um brasileiro que morreu defendendo uma família nipônica.


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