No ano eleitoral de 2022, não bastassem os múltiplos focos de atenção na agenda doméstica, o governo Bolsonaro pode contar desde já com uma fonte potencial de trabalho pesado na frente externa — de impacto inevitável no instável panorama econômico. O anúncio de acordo para a formação do novo governo na Alemanha traz, para a diplomacia brasileira, sinais razoavelmente claros de que o país será mais exigido nos próximos meses, muito especialmente no tema global e premente das mudanças climáticas.
O líder da social-democracia alemã, Olaf Scholz, assumirá o posto de chanceler (chefe de governo) à frente de um gabinete de coalizão com ecologistas e liberais. A aliança a três, inédita na democracia do pós-guerra, se desdobra em uma medida igualmente pioneira que dá medida da importância atribuída à política ambiental. Robert Habbeck, copresidente dos Verdes, responderá por um "superministério" para Economia e Clima.
A criação de uma pasta com poderes para conduzir a transição ao pós-carbono tem relação direta com as metas assumidas no acordo programático de coalizão — uma exigência legal incontornável no sistema político alemão. O prazo para desligar as usinas elétricas a carvão passa de 2038 para 2030. O compromisso é acelerar também a aposentadoria dos carros com motor a explosão e o predomínio (80%) das fontes renováveis na matriz energética.
Para exportação
As diretrizes traçadas para a frente doméstica serão também a linha mestra para a política externa do governo Scholz, antes de tudo no âmbito da União Europeia. Se restasse alguma dúvida, a escolha de uma ecologista para as Relações Exteriores ratifica o lugar central conquistado pela legenda surgida dos protestos ecopacifistas dos anos 1980 na então Alemanha Ocidental. Annalena Baerbock foi a candidata dos Verdes a chanceler, na eleição de setembro, e é a outra copresidente do partido.
Foi na condição de quase-ministra que ela participou da COP26, na Escócia, no início de novembro. Durante a conferência, defendeu a adoção de uma "política ambiental mundial". Ligada à vertente mais propriamente ecológica da legenda, Annalena ressaltou a responsabilidade das economias desenvolvidas — começando pela própria Alemanha, ao lado de EUA e China — no financiamento da transição global à economia pós-carbono. Mas não omitiu as cobranças a governos de potências emergentes, como o Brasil.
É brava
O perfil e a trajetória da nova contraparte em Berlim estão, certamente, no radar do chanceler Carlos França, no Itamaraty. Annalena Baerbock trafegou com desenvoltura no Parlamento Europeu, nos últimos anos, em particular nos corredores da política externa. Foi nessa condição que criticou sem papas na língua, em 2019, a ausência de cláusulas ambientais vinculantes no acordo comercial fechado entre a UE e o Mercosul.
A então eurodeputada defendeu o exercício de "pressão maciça" sobre os parceiros sul-americanos para a observação estrita de parâmetros "aceitáveis" quanto a proteção ambiental e respeito aos direitos humanos. "Inclusive (pressão) sobre o senhor Bolsonaro", fez questão de destacar. Na ocasião, relatórios de diferentes origens — inclusive o Inpe, no Brasil — apontavam recordes no desmatamento da Amazônia.
Na posição de parlamentar, a hoje futura ministra de Relações Exteriores acenou com a proibição da importação de produtos primários brasileiros, na ausência de algum tipo de certificação ambiental. O processo em curso de ratificação do acordo UE-Mercosul colocará em teste as posições de Annalena Baerbock, no posto que passará a ocupar.
Só pra contrariar
A nomenclatura política alemã pode induzir a uma confusão entre as funções de chefe de governo e titular da diplomacia. Na imensa maioria dos países, o ministro das Relações Exteriores é chamado de "chanceler". Na Alemanha, porém, esse título é reservado ao primeiro-ministro, como é designado nos regimes parlamentaristas.
Na origem do desencontro está a unificação do país, concluída em 1871 com a formação do I Reich (império). A serviço do kaiser (imperador) Guilherme I, quem a conduziu foi Otto von Bismarck, político oriundo da nobreza prussiana. O primeiro reichskanzler ficou conhecido como "chanceler de ferro". Marcou época a ponto de que, passado século e meio, a Alemanha republicana e democrática de hoje tenha como chefe de governo o bundeskanzler ("chanceler federal").
Pôquer nuclear
A nova titular da diplomacia alemã, com a considerável experiência que acumula para quatro décadas de vida, terá pela frente logo no início do mandato as difíceis negociações destinadas e reatar o acordo firmado entre outras cinco potências e o Irã, em 2015. O objetivo do tratado era congelar o programa nuclear do regime islâmico, em troca da garantia de abastecimento de urânio enriquecido para os reatores civis.
Desde 2019, quando Donald Trump retirou os EUA do processo, o Irã retomou progressivamente as atividades abandonadas. No saldo das idas e vindas, está hoje mais próximo de obter armas nucleares do que há seis anos. Joe Biden, sucessor de Trump, decidiu voltar à mesa, mas sofre internamente a pressão política da comunidade judaica, que faz eco à impaciência de Israel diante do risco de ver ameaçado o monopólio atômico militar que detém hoje, na prática, no Oriente Médio.