Tempos interessantes. Na cúpula do G-20, os líderes de China, Rússia, Japão e México preferem não comparecer. Em Roma, líderes de Índia e Estados Unidos vão visitar o papa, ao contrário do que faz o líder do país com mais católicos no planeta que, intratável, pegou fama de bicho do mato.
No entanto, esse não é um artigo sobre os grandes do mundo, mas sobre um pequeno país que chamou a atenção no G20 porque anda surpreendendo nos últimos meses. É sobre como o interesse governa o mundo.
Paul Kagame, que governa Ruanda há duas décadas, foi convidado especial do G20. Kagame foi pressionar pela alocação do equivalente a US$ 100 bilhões em direitos especiais de saque (DES) para o continente africano. Os DES são ativos mantidos pelo FMI e foram expandidos para ajudar países no combate ao coronavírus e na recuperação pós-pandemia. Países africanos reclamam que o liberado para eles não tem sido suficiente. DES são considerados boa alternativa para a situação atual, pois funcionam como empréstimos com juros muito baixos e sem risco atrelado a refinanciamentos futuros.
Em Roma, Kagame foi recebido na embaixada da França em encontro organizado por Emmanuel Macron com outros líderes da União Europeia e com Félix Tshisekedi, presidente da República Democrática do Congo e, atualmente, à frente também da União Africana. Se Macron deseja se colocar como fiador dos US$ 100 bilhões a mais para a África, Kagame quer ser o intermediário em nome da agência de desenvolvimento da União Africana. Não há dúvidas de que o continente africano precisa de acesso a mais DES do que os US$ 33 bilhões direcionados até aqui. O interessante são os caminhos que ligam a disposição francesa e o papel de Ruanda.
O pequeno país no meio da África subsaariana é um pouco menor do que Alagoas e comumente lembrado por uma das mais absurdas tragédias dos anos 1990, recriada artisticamente no famoso filme Hotel Ruanda. Uma ficção baseada em fatos reais sobre o genocídio que "todo mundo concorda que foi genocídio", como diz Samantha Power, embaixadora dos EUA na ONU.
Durante o genocídio perpetrado por milícias hutus contra o grupo tutsi, em Ruanda, Paul Rusesabagina, um hutu, deu abrigo para tutsis no hotel que gerenciava. Estima-se que a atitude de Rusesabagina teria salvo pelo menos mil pessoas da morte naquele trágico 1994. Ao todo, cerca de 800 mil tutsis foram massacrados ao longo de 100 dias.
De fora, Paul Kagame organizou a retomada de Ruanda pelos tutsis por meio da Frente Patriótica Ruandesa. Tomou o poder naquele mesmo 1994. Desde então, Kagame cuida da defesa e das relações exteriores do país. A partir de 2000 é também seu presidente — daqueles que vão mudando as regras e seguem se elegendo com quase todos os "votos".
Atualmente, muita gente se choca que o governo de Kagame mantenha preso Paul Rusesabagina, o herói da história do filme Hotel Ruanda. A questão é que a pequena Ruanda, sob Kagame, desenvolveu um aparato militar de causar inveja ao resto da África e o usa indiscriminadamente.
É assombroso o que se passa em Cabo Delgado, que não é nosso parente, província no extremo norte de Moçambique, assolada por milícias extremistas desde 2017. Com o passar do tempo, ficou claro que as Forças Armadas de Moçambique estavam perdendo controle da província. O país lusófono pediu apoio à União Africana e à Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) sem sucesso. Tanto um como outro demoraram para ajudar. Eis que, a partir de julho, desembarcam em Cabo Delgado cerca de dois mil militares e policiais da longínqua Ruanda e dão conta de expulsar os rebeldes que aterrorizam a província.
A empobrecida região norte de Moçambique já foi local de um projeto de cooperação para desenvolvimento nipo-brasileiro. Chamado ProSavana, projeto dos delirios diplomáticos dos governos Lula-Dilma, visava usar a expertise adquirida no cerrado brasileiro para transformar Moçambique em exportador de alimentos. Após apanhar muito internacionalmente, o projeto foi abandonado, e as esperanças de geração de renda para a região passaram a ser então a exploração de gás liquefeito natural pela multinacional francesa Total.
Em março deste ano, a França divulgou um relatório oficial em que faz um forte mea-culpa por seu comportamento desastroso durante o genocídio de 1994 em Ruanda. Foi a senha para uma reaproximação entre os países e pavimentou, discretamente, o socorro que Ruanda presta, atualmente, parte a Moçambique parte à francesa Total. E, assim, segurança, intervenção humanitária, negócios e desenvolvimento vão sendo encaminhados nesse mundo de encontros e desencontros.
PAULO DELGADO, Sociólogo