A noite de 3 de novembro de 1991 mudou para sempre a história do Peru.
E também a vida de Rosa Rojas.
Naquela noite, há exatos 30 anos desde a última quarta-feira (3/11), um grupo de homens armados encapuzados entrou em uma casa de Barrios Altos, um bairro popular de Lima, e disparou indiscriminadamente contra moradores, que estavam reunidos para comer uma tradicional ceia com "pollada" e arrecadar dinheiro para consertar o bueiro do local.
Os homens, membros do chamado Grupo Colina, um conjunto de agentes do Serviço de Inteligência do Exército peruano encarregado de execuções extrajudiciais, confundiram a multidão com integrantes do grupo guerrilheiro maoísta Sendero Luminoso.
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A operação deixou 15 mortos e quatro feridos.
O marido de Rosa, Manuel Ríos Pérez, e o filho de oito anos do casal, Javier Ríos Rojas, morreram pelas balas disparadas por agentes do Estado.
O crime foi uma das violações de direitos humanos que, décadas depois, em 2009, resultariam na prisão de Alberto Fujimori, na época presidente do Peru, e de seu mão direita Vladimiro Montesinos, condenados pela Justiça peruana como responsáveis intelectuais pelas ações do Grupo Colina.
"Até hoje dizem que éramos terroristas, quando nós não tínhamos nada a ver com isso", lamenta Rosa, em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
Segundo o jornalista Gustavo Gorriti, "não houve no Peru um esforço sério em processar aqueles acontecimentos. E qualquer pessoa que tenha uma posição favorável aos direitos humanos é atacada pelos grupos de ultradireita — que se fortaleceram nos últimos anos — como sendo terrorista".
O massacre de Barrios Altos
Em 1991, o Peru estava convulsionado pela escalada de atentados que a guerrilha Sendero Luminosos promovia no país.
Até então, o grupo havia centrado na zona rural as suas ações violentas, que resultaram em dezenas de milhares de mortos. Uma ofensiva urbana virou um problema para Fujimori — eleito com a promessa de acabar com os atentados e estabilizar a economia.
Os ataques do Sendero haviam se tornado tão habituais que, quando Rosa viu chegar um grupo encapuzado e armado, a primeira coisa em que pensou antes de começar a correr foi: "meu Deus, os terroristas chegaram".
"Tínhamos organizado a 'pollada' para conseguir dinheiro para consertar o bueiro, porque saía muita sujeira dali e era onde meus filhos brincavam. Daí entraram esses homens gritando 'cachorros, todos ao chão'. Saí correndo, pensando que todos os demais fariam o mesmo, mas de repente me vi correndo sozinha."
Pedindo ajuda desesperada aos demais moradores, ela de repente começou a ouvir o som dos tiros.
Primeiro, encontrou o marido, já morto, "com os olhos abertos, como se estivesse olhando para mim".
Depois encontrou o filho, mas resistiu a acreditar que a criança também estivesse morta. Carregou-o desfalecido nos braços até que encontrou um policial e pediu ajuda.
"Eles me conheciam e disseram, 'deixe-o, seu filho está morto'", conta Rosa, entre lágrimas, 30 anos depois.
Anos em busca de justiça
Foi então que começou para Rosa uma luta compartilhada com as outras vítimas em busca de justiça e por seguir em frente com o que restou de sua família: duas filhas que na época tinham 5 anos e 9 meses.
"Deixava as meninas com a minha irmã e saía para fazer vendas com meu triciclo, na Plaza Italia, em Lima", ela conta. No verão, vendia sorvetes; no inverno, pratos com mandioca e doces.
Também participava de protestos e iniciativas para reivindicar punição aos responsáveis, um esforço que se chocou com os anos de apogeu do poder de Fujimori no Peru.
Gorriti afirma que "a partir de 1992, Fujimori viveu uma época de considerável fortalecimento, na qual muitos preferiram olhar para o outro lado" diante das denúncias de violações de direitos humanos.
Antes de Barrios Altos, já havia denúncias de abusos por partes de agentes do Estado peruano na zona rural, e em julho de 1992 outra ação do Grupo Colina deixou mais dez mortos, no que ficou conhecido como o massacre de La Cantuta.
Os clamores por justiça de Rosa e das demais vítimas se viram frustrados por duas anistias sucessivas e por outros esforços para blindar os responsáveis.
Segundo o relatório final da Comissão da Verdade e da Reconciliação do Peru, "a investigação do crime (de Barrios Altos) foi deliberadamente impedida mediante uma imposição de mecanismos legislativos e judiciais encobrindo e dificultando a ação dos responsáveis (pelos processos)".
Segundo Rosa, um dos aspectos mais dolorosos foi a criminalização das vítimas por parte da sociedade peruana.
Um exemplo foi quando uma de suas filhas ouviu na escola que "seu pai foi morto por ser terruco", que é o termo depreciativo usado pelos peruanos para se referirem aos integrantes e colaboradores do Sendero Luminoso.
"Eu havia tentado evitar contar às minhas filhas a respeito de como seu pai tinha morrido e tentava protegê-las das notícias", conta Rosa. A filha mais nova precisou de acompanhamento psicológico.
Foi só durante a Presidência de Alejandro Toledo (2001-06) que Rosa conseguiu ser indenizada pela morte do marido e do filho.
A quantia foi gasta para comprar uma casa e um túmulo para as duas vítimas em um cemitério de Lima e para custear a educação das filhas.
Rosa diz que também ajudou algumas famílias afetadas, até que "o dinheiro acabou".
'Ódio não vai me devolver meu marido e meu filho'
Quanto a Fujimori, ele foi extraditado do Chile ao Peru em 2007 e nos anos seguintes condenado pelo massacre de Barrios Altos e outras violações de direitos humanos, além de crimes de corrupção.
O ex-presidente segue preso, embora sua família e advogados tenham repetidamente pedido sua libertação por motivos de saúde e idade avançada (ele tem 83 anos).
Até hoje Fujimori segue dividindo os peruanos: seus simpatizantes o veem como o presidente que derrotou o Sendero Luminoso e se concentrou na economia. Seus críticos, como Rosa, apontam para os abusos de direitos humanos (o ex-presidente foi condenado a 25 anos de prisão pela morte de 25 pessoas e por sequestros).
"É um assassino (...) que tratou o Peru como se fosse sua propriedade sem se importar em deixar mortos, viúvas e órfãos", declara Rosa.
Ao mesmo tempo, ela parou de participar dos protestos em defesa dos direitos humanos e, nesta quarta-feira, passou o aniversário de morte do marido e do filho em uma missa íntima em sua paróquia.
"O ódio não vai me devolver meu marido e meu filho, então faz anos que os perdoei (os culpados)", diz.
Embora nunca tenha recebido um pedido de desculpas, nem de Fujimori, nem de ninguém.
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