Pandemia

Ômicron expõe acesso desigual à imunização no planeta

Variante do coronavírus se espalha pelo planeta, com mais casos detectados no Canadá, Austrália, Holanda, Dinamarca e Reino Unido. Cientistas e a Organização Mundial da Saúde (OMS) criticam iniquidade na vacinação contra a covid-19

Rodrigo Craveiro
postado em 29/11/2021 06:00
Manifestantes protestam contra medidas de restrição tomadas pelo governo de Áustria, em Klagenfurt: na contramão da ciência -  (crédito: Gert Eggenberger/AFP)
Manifestantes protestam contra medidas de restrição tomadas pelo governo de Áustria, em Klagenfurt: na contramão da ciência - (crédito: Gert Eggenberger/AFP)

O alerta partiu da cientista que identificou a cepa ômicron e rastreou a variante do Sars-CoV-2 na África do Sul e em Botsuana: "Se não vacinarmos o continente africano, ninguém será capaz de dormir em segurança no resto do mundo". Angelique Coetzee (leia entrevista), diretora da Associação Médica da África do Sul, também explicou ao Correio que as mutações do coronavírus ocorrem no organismo de pessoas com comprometimento imunológico e das não imunizadas. A desigualdade no acesso à vacina, aliada ao negacionismo, possibilitou que a ômicron surgisse na África e se espalhasse pelos cinco continentes do planeta. Ontem, dezenas de milhares de austríacos se manifestaram contra a obrigação de se imunizarem, em Graz e em Klagenfurt (sul). 

A Holanda confirmou que 13 dos 61 passageiros da África do Sul que desembarcaram em Amsterdã na sexta-feira estão com a nova cepa. A Dinamarca detectou a ômicron em dois cidadãos procedentes da África do Sul. "Estamos numa corrida contra o relógio" para frear a nova variante, admitiu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. O Reino Unido divulgou uma terceira ocorrência: um cidadão que não estaria mais em território britânico.

O Canadá anunciou dois casos — ambos de Ottawa, recém-chegados da Nigéria. Por sua vez, a Austrália notificou duas infecções em cidadãos que chegaram a Sydney do sul da África. Ontem, cientistas italianos produziram a primeira imagem tridimensional da ômicron e atestaram que a cepa tem mais mutações do que a delta (leia nesta página).

A iniquidade na taxa de imunização impulsiona os contágios, na opinião de cientistas. Cerca de 54,1% da população mundial recebeu ao menos uma dose do fármaco contra a covid-19. A disparidade, no entanto, aparece em países de baixa renda, onde apenas 5,7% da população recebeu uma única aplicação da vacina.

Na África do Sul, 23,76% dos cidadãos completaram o ciclo de imunização. As estatísticas são ainda mais alarmantes na Nigéria (1,63%), na Etiópia (1,21%) e em Botsuana (19,58%), de acordo com o site Our world in data. Na sexta-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez um apelo à comunidade internacional para que doe vacinas aos países mais pobres. "Esta pandemia não vai acabar até que tenhamos uma vacinação global", disse o democrata.

Apelos

Coetzee advertiu sobre a capacidade de transmissibilidade da ômicron. "Na segunda-feira passada (22), a taxa de infecção pelo coronavírus na África do Sul era de 1%; hoje, está a 9,8%", comentou. Em pronunciamento de 29 minutos à nação, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, afirmou que a identificação da nova cepa foi resultado do "excelente trabalho" dos cientistas e exortou a comunidade internacional a reverter, "imediata e urgentemente", os "cientificamente injustificáveis" vetos à entrada de cidadãos procedentes do país. 

Por meio de nota, a Organização Mundial da Saúde (OMS) defendeu como de "vital importância" que "as desigualdades no acesso às vacinas sejam tratadas com urgência para garantir que grupos vulneráveis (...) recebam sua primeira e sua segunda doses". Também pediu a suspensão das restrições às viagens para o sul da África.

Professor de doenças infecciosas na Universidade da Cidade do Cabo, Marc Mendelson afirmou ao Correio que a desigualdade no acesso às vacinas é um fator contribuidor para o surgimento da ômicron. "Não se trata da única razão, no entanto. Quanto mais infecções você permitir — baixas taxas de vacinação, falta do uso de máscaras, desrespeito ao distanciamento social —, maior a replicação viral e mais chances da ocorrência de mutações que darão ao vírus uma vantagem de sobrevivência", advertiu. "O cerne da questão é a seleção natural darwiniana. No momento, o vírus está vencendo."

De acordo com Mendelson, a capacidade de realizar mutações indica que o coronavírus busca aumentar a transmissibilidade ou a habilidade de enganar o sistema imunológico. "O número de mutações na ômicron — algumas novas, algumas velhas — aumenta a chance de que uma ou ambas coisas ocorram. Nesse momento, simplesmente não sabemos. O mundo deve permanecer em alerta, mas continuar a promover a imunização e as medidas de prevenção."

Diretor do Departamento de Virologia Médica da Universidade Stellenbosch (Cidade do Cabo), Wolfgang Preiser disse que o problema é a falta de adesão à imunização na África do Sul. Ele lembra que o país tem vacina para atender à população adulta. O biólogo evolucionário Tom Wenseleers, professor da Universidade Católica de Leuven (Bélgica), considera significativo que a ômicron tenha surgido em uma população com cobertura vacinal de 24%. "Não apenas a iniquidade da vacina é responsável pela baixa taxa de imunização na África do Sul. A desinformação e o fanatismo religioso levaram à hesitação em relação à vacina. Este fenômeno também é reflexo das disparidades socioeconômicas e educacionais."

 ENTREVISTA / Angelique Coetzee

 Angelique Coetzee, médica da África do Sul que descobriu e rastreou a variante ômicron
Angelique Coetzee, médica da África do Sul que descobriu e rastreou a variante ômicron (foto: Arquivo pessoal )

Presidente da Associação Médica Sul-Africana, Angelique Coetzee começou a deparar com casos atípicos de covid-19 em 18 de novembro. A primeira cientista a identificar e a rastrear a variante ômicron falou ao Correio, por telefone, de Pretória, na província de Gauteng. "Até agora, não temos visto uma alta incidência de infecções pela ômicron entre as pessoas vacinadas. Isso pode mudar", admitiu.

Como descobriu a ômicron?

Sou diretora da Associação Médica da África do Sul e membro do Comitê Consultivo Ministerial de Vacinas (VMAC) do Ministério da Saúde. Por fazer parte deste comitê, é mais fácil para mim obter um quadro clínico de pacientes afetados por doenças que normalmente não vemos no país. Entre oito e dez semanas, não testemunhávamos nenhum caso de covid-19. Em 18 de novembro, jovens chegaram com sintomas incompatíveis com os da cepa delta e testaram positivo para a covid-19. Nós alertamos o VMAC sobre pacientes com fadiga, dores de cabeça e no corpo e pulsação alta.

Quais características desta cepa mais chamaram sua atenção?

Foi o fato de os pacientes serem jovens e com fadiga. Eles se queixaram de sintomas que perduraravam por dois dias. Isso não é normal entre homens jovens. Com base na minha experiência, adverti colegas médicos na região de Pretória. Vimos apenas um caso com sintomas graves, em uma criança de 6 anos, com febre alta. Nós decidimos que ela se tratasse em casa. Receitamos o antiviral Tamiflu e a avaliei no dia seguinte, quando constatei que tinha melhorado. Dois dias depois, eu a vi e a melhora foi dramática. Não sabemos se foi a droga, o vírus por si mesmo ou o sistema imunológico a causa dessa melhora.

A senhora crê que vacinas sejam eficazes contra a ômicron?

O que temos visto são casos leves, mesmo entre não vacinados. Isso pode mudar. Se o quadro clínico dos pacientes permanecer leve, com muito poucos casos graves, ficaríamos extremamente felizes, mesmo se houver alta taxa de transmissibilidade. É a gravidade da doença que mata as pessoas. A questão será saber se as vacinas serão capazes de prevenir quadros graves. Talvez sejamos capazes de responder a isso até o fim da próxima semana. Ainda não vimos o aparecimento de quadros graves.

 

 

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