"Fui estuprado por médicos da CIA."
Essa frase faz parte de um relato assustador de 39 páginas de Majid Khan, um membro da Al Qaeda, detido por quase duas décadas na base naval dos Estados Unidos, em Guantánamo.
O homem, nascido na Arábia Saudita e criado no Paquistão, foi sentenciado na sexta-feira (29/10) a 26 anos de prisão depois de se declarar culpado por ajudar o grupo fundamentalista islâmico.
Mas, como parte do acordo judicial, ele teve permissão para ler um relato das experiências dele, no que foi o primeiro testemunho público de abusos cometidos contra um detido após os ataques de 11 de Setembro de 2001, em Nova York, e contra o Pentágono.
"Os americanos me forçaram um enema (lavagem intestinal por meio de uma sonda retal). Não sei por que fizeram isso e a dor foi terrível. Eles examinaram meu corpo com as mãos e tiraram fotos minhas pelado. (...) Alguém colocou uma fralda em mim e a prendeu com uma fita adesiva", lembrou ele em uma narrativa escrita à mão.
Khan, que morava em Baltimore, nos Estados Unidos, antes de ser recrutado pela Al Qaeda, garantiu na Justiça que passou dias acorrentado, às vezes enforcado, sem comida ou roupa, em celas escuras, com música alta, sem banheiro ou eletricidade.
"Eu não tinha acesso a um banheiro, nem mesmo a um balde, então, fui forçado a fazer minhas necessidades em um canto", disse ele.
Khan leu seu depoimento perante um júri de oito oficiais militares dos Estados Unidos, que se reuniu por menos de três horas no dia seguinte e o condenou a 26 anos de prisão, a contar desde a confissão dele, em fevereiro de 2012.
No entanto, a sentença é em grande parte simbólica. Khan e seus advogados chegaram a um acordo secreto com um alto funcionário do Pentágono, segundo o qual o homem poderá ser libertado em fevereiro de 2022, e, no mais tardar, em fevereiro de 2025, dada a colaboração dele com o governo dos Estados Unidos.
Khan admitiu trabalhar como mensageiro para a Al Qaeda e está detido desde sua captura no Paquistão, em 2003.
Abusos
Segundo o relato, a violência contra ele foi tão grande que ele começou a dizer aos interrogadores o que eles queriam ouvir "para que os abusos parassem".
Mas, "quanto mais eu cooperava e contava, mais eles me torturavam", disse.
Ele afirma ter sido colocado em uma banheira de água gelada, ter passado dias acorrentado e recebido ameaças de possíveis represálias contra a família dele nos Estados Unidos, o que o levou a estados de delírio.
"Depois de dois dias sendo enforcado, privado de sono e submetido a temperaturas congelantes, perdi a noção da realidade. Lembro-me de alucinar, de ver uma vaca, uma lagartixa gigante", disse.
De acordo com seu depoimento, foram os enemas repetidos e a alimentação anal forçada que deixaram as marcas mais profundas nele.
Khan cresceu no Paquistão e mudou-se para os Estados Unidos aos 16 anos.
Ele era, segundo contou, um "menino jovem, impressionável e vulnerável" quando foi recrutado para a organização. Agora, aos 41 anos, ele diz que rejeita tanto a Al Qaeda quanto o terrorismo.
Reações
Após a sentença de Khan, sete dos oficiais de alta patente que formaram o júri militar criticaram a suposta tortura que ele descreveu.
Em uma carta obtida pelo jornal The New York Times, na qual a maioria do painel pedia clemência para Khan, os militares descreveram as ações contra o prisioneiro como "uma mancha no tecido moral dos Estados Unidos".
"Khan foi submetido a abusos físicos e psicológicos muito além das técnicas de interrogatório aprovadas, que estão mais próximas da tortura realizada pelos regimes mais abusivos da história moderna", disse o júri.
Os oficiais também consideraram que os abusos praticados contra o preso "não tiveram nenhum valor prático em termos de inteligência, ou qualquer outro benefício tangível para os interesses dos Estados Unidos".
Eles também condenaram que Khan tenha ficado preso sem acusação por nove anos e sem acesso a um advogado durante os primeiros quatro anos e meio. Eles descreveram essa situação como "total desrespeito aos conceitos fundamentais sobre os quais a Constituição foi fundada" e "uma afronta aos valores americanos e ao conceito de Justiça."
A 'guerra contra o terrorismo'
Os ataques de setembro de 2001 levaram os Estados Unidos à campanha mais longa e custosa de sua história: a chamada "guerra contra o terrorismo".
As operações internacionais, apoiadas por países aliados e pela Otan, levaram não só à abertura de frentes de batalha em várias nações do Oriente Médio, mas também à caça aos principais líderes e membros do que os Estados Unidos consideram "organizações terroristas".
Desde o início dos anos 2000, os chefes de supostos membros da Al Qaeda, Talebã e de outros grupos extremistas começaram a aparecer na lista dos mais procurados do mundo.
Desde janeiro de 2002, os primeiros presos começaram a chegar a Guantánamo e, aos poucos, a prisão improvisada em uma base militar no leste da ilha de Cuba foi preenchida com alguns dos homens considerados os mais perigosos do mundo.
Foi então que dois psicólogos de carreira das Forças Armadas americanas, James E. Mitchell e Bruce Jessen, começaram a colaborar com a Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês) para desenvolver "técnicas aprimoradas de interrogatório".
Entre outras técnicas, além do afogamento simulado, os presidiários eram trancados em pequenas celas, submetidos a condições de extremo isolamento, privação de sono, manipulação alimentar, nudez forçada ou abuso retal.
Mas Guantánamo não foi a única: os Estados Unidos começaram a criar centros de detenção secretos em muitos países do mundo, onde prisioneiros eram interrogados para obter informações sobre a Al Qaeda e possíveis "ataques terroristas".
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