Pela primeira vez desde o retorno da democracia, em 1974, o Parlamento português rejeitou um projeto de orçamento do governo. As contas para 2022 foram recusadas por 117 congressistas; 108 votaram pela aprovação do texto e cinco se abstiveram. A grave crise política sepultou a chamada “geringonça” — a coalizão entre o Partido Socialista e outras facções da esquerda, criada em 2015 para viabilizar a governabilidade. Na noite de ontem, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, reuniu-se com o primeiro-ministro, António Costa e Ferro, por duas horas e meia, no Palácio Nacional de Belém, em Lisboa.
“O governo sai desta votação com a consciência tranquila e de cabeça erguida. (…) Cabe exclusivamente ao senhor presidente da República avaliar esta situação e tomar as decisões que entenda que deva tomar”, escreveu o premiê nas redes sociais. Rebelo havia advertido que utilizaria o poder de dissolução do Parlamento e convocaria eleições, em caso de bloqueio da lei orçamentária. No próximo sábado, o presidente manterá encontros com as lideranças dos partidos, antes de uma “reunião especial” do Conselho de Estado, marcada para 3 de novembro.
Em entrevista ao Correio, Manuel Carvalho — diretor do Público, um dos principais jornais de Portugal — explicou que o Orçamento de 2022 foi repelido depois do esgotamento de um programa político no qual o Partido Socialista (PS), que forma um governo minoritário, dependia do apoio parlamentar do Partido Comunista Português (PCP) e do Bloco de Esquerda. “Esse modelo (a ‘geringonça’) era, em sua essência, ilógico e antinatural. Isso porque um partido social-democrata estava refém do suporte parlamentar de forças políticas de uma esquerda que não avaliza a economia de mercado nem o modelo político e social da União Europeia. O fato de ter durado seis anos é uma façanha extraordinária de equilíbrio político”, afirmou.
De acordo com Carvalho, a gravidade da crise é explicada pelo contexto em que ocorre. Ele lembrou que Portugal entrou em um período de instabilidade, depois de um ano e meio de pandemia da covid-19. “Isso, no exato momento em que tinha a oportunidade de ambicionar um regresso ao crescimento econômico e à reconstrução, com apoio de programas financiados pela União Europeia”, disse. O diretor do Público considera a dissolução do Parlamento algo inevitável. “Sem orçamento aprovado, a gestão de Portugal ficaria limitada aos assuntos atuais, no momento em que são necessárias decisões com impacto duradouro para o futuro do país. Está na hora de devolver a palavra aos eleitores. Uma democracia madura como a portuguesa sempre terá capacidade para encontrar uma solução para crises como esta”, acrescentou o jornalista.
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Egoísmo
Professor de ciência política da Universidade Católica, em Lisboa, João Pereira Coutinho disse à reportagem que previu a crise logo depois das eleições autárquicas de 26 de setembro. Segundo ele, naquela ocasião, os partidos de esquerda passaram a pensar nos próprios interesses e não nos anseios de Portugal. “O PS entendeu que o momento para tentar uma maioria absoluta no Parlamento era agora, e não em 2023. Cansados de derrotas eleitorais, o Bloco de Esquerda e o PCP concluíram que não vale a pena continuar a viabilizar o governo dos socialistas”, avaliou.
Para Coutinho, o presidente Marcelo Rebelo foi claro: se houver chumbo do Orçamento de 2022 (como chamam a rejeição), o Parlamento será dissolvido. “Se essas palavras forem levadas a sério, este governo acabou”, afirmou. “Pode continuar como governo de gestão por mais dois ou três meses, mas, depois, haverá eleições.”
António Costa Pinto, cientista político da Universidade de Lisboa, vê uma ironia. “Talvez este projeto orçamentário tenha sido o mais à esquerda até hoje, e o PS tentou concessões nas negociações”, disse ao Correio. Ele crê que o PS se manterá no poder por alguns meses, mas entende a convocação de eleições como a hipótese mais plausível. “As eleições vão apanhar partidos da oposição de centro-direita em processos eleitorais internos.”