“Mentiras podem matar!”
A jornalista filipina Maria Ressa, 58 anos, é a tradução da coragem. Não à toa o Comitê Nobel Norueguês a escolheu, na última sexta-feira, para dividir o Nobel da Paz com o também jornalista russo Dmitry Muratov, 59. Apenas 137 pessoas receberam o prêmio mais prestigiado do planeta. Ressa tornou-se a primeira filipina e a 18ª mulher em 102 edições do Nobel. Na madrugada de segunda-feira, ela conversou com o Correio por meio de videoconferência.
Cofundadora da empresa de jornalismo investigativo digital Rappler, em Manila, Ressa expôs o autoritarismo do presidente Rodrigo Duterte e a brutal campanha de combate às drogas — 30 mil pessoas foram assassinadas entre julho de 2016 e março de 2019, segundo o Tribunal Penal Internacional. Durante 27 minutos, ela mostrou-se apaixonada pela profissão. “Jornalismo é ativismo”, afirmou. A jornalista-ativista quase viu a empresa ser forçada à falência, depois que o governo intimidou os anunciantes, e chegou a receber 10 mandados de prisão, além de mensagens ameaçadoras. Não se amedrontou.
Ressa advertiu que “nada pode bater as mentiras que vão em uma lama tóxica, que escorre pelas mídias sociais” e atacou as plataformas por terem se transformado em celeiros de fake news. “Mentiras podem matar!”, alertou, ao denunciar governantes autoritários e populistas, inclusive o presidente Jair Bolsonaro. “Líderes assim recebem poder por um curto período de tempo e, no fim, podem matar o seu povo. (…) Um assassinato por meio do vírus”, disse. Em 10 de dezembro, Ressa e Muratov, editor-chefe do jornal Novaya Gazeta, dividirão o prêmio de 10 milhões de coroas (cerca de R$ 6,27 milhões).
Na sua opinião, qual é o objetivo do jornalismo?
O holofote que o Comitê Nobel deu aos jornalistas tem a ver com mostrar o quanto é mais difícil e mais perigoso cumprir com o papel do jornalismo. Vocês devem saber sobre isso em seu país. A missão e o propósito do jornalismo mudam quando ele é governado por certos padrões e pela ética. Então, qual é a missão do jornalismo? Na maior parte dos países democráticos em que o jornalismo opera como o quarto poder, os jornalistas atuam para o povo de uma democracia. Nós devemos ter a coragem de fazer perguntas difíceis, de exigir punição de autoridades dos setores público e privado. E cobrar transparência, para que tenhamos a esperança de que possamos ter a responsabilização. Fazemos isso em nome do povo ao qual servimos. Os fatos estão no centro de qualquer democracia funcional.
A senhora esperava ganhar o Nobel? Ficou muito surpresa com este reconhecimento?
Fiquei atordoada! E é engraçado, porque o Comitê Nobel gravou a conversa telefônica. Eu me senti meio tola, no sentido de que fiquei dizendo que estava sem voz, mas eu falava que estava sem voz (risos). Ao mesmo tempo, quando desliguei o telefone, eu me senti como... Isso foi um lembrete não apenas para mim e para os jornalistas filipinos, mas para jornalistas do mundo todo, de que não estamos sozinhos. E de que nós fazemos o nosso trabalho, servimos ao povo. E que preenchemos um importante critério em qualquer democracia. A última parte aqui é que as plataformas de mídias sociais fizeram com que todo o conteúdo fosse igual: mentiras e fatos. Seus algoritmos têm sido explorados por líderes populistas e autoritários que usam a mentalidade do “nós contra eles” para serem eleitos. Uma vez eleitos, começam a colapsar as instituições de dentro para fora.
Que lição é possível extrair da relação das mídias sociais com a apuração de fatos?
As histórias que contamos não deveriam ser misturadas com as mentiras, que estão amarradas aos fatos. Elas se espalham mais rapidamente e mais longe do que as histórias que contamos. No fim das contas, os fatos são enfadonhos. Passamos toda a nossa carreira aprendendo a como contar histórias que capturem os interesses e as emoções de nosso povo. Mas nada pode bater as mentiras que vão em uma lama tóxica, que escorre pelas mídias sociais. Ou em contas privadas, que é a forma como o jornalista é atacado. Isso nos mostra que há uma qualidade especial para o jornalista, que a maioria dos criadores de conteúdo não teria. E essa qualidade especial é a coragem. Quem quer dizer a alguém muito poderoso que ele está errado? Ou afirmar: “Ei, você tem que responder a essas perguntas!”. Pessoalmente, você não quer fazer isso, certo? Porque sabe que esses tipos de líderes autoritários são vingativos. E vão descontar em você. Assim como fizeram com a Rappler. Eu tive 10 mandados de prisão nos últimos dois anos. Mas a parte central do jornalista, que é a coragem, o mantém fazendo perguntas, o mantém fazendo reportagens investigativas.
Qual é a receita para combater as fake news?
Eu penso sobre três meios: tecnologia, jornalismo e comunidade. Nós temos os pilares da Rappler. Quando criamos a Rappler, em 2012, nós vivíamos nas mídias sociais. Era a principal plataforma de distribuição. À medida que as mídias sociais cresceram, as organizações de notícias vieram para essas plataformas. Era a ambição dessas plataformas de tecnologia americanas. Um processo, um modelo de negócios ao qual o ex-professor emérito da Universidade de Harvard Shoshana Zuboff chamou de “capitalismo de vigilância”. Que nossos dados, tudo o que publicamos, é aproveitado por uma máquina de aprendizado para criar um modelo de nós. E isso tudo é aglutinado pela inteligência artificial para servir ao momento mais fraco de uma propaganda — o anúncio publicitário — ou ao governo, e esta é a nova propaganda.
Qual é a diferença entre ambas?
Cada uma é como se fosse um ciclo. É como se fosse uma rede, de fato. Se você clicar em um link que diz que você gosta do governo, você é levado mais fundo até o final, porque a meta é mantê-lo no site. Em relação ao primeiro pilar, que citei: a tecnologia... A Rappler permanece como parceira da checagem de fatos do Facebook, enquanto há apenas dois checadores de fatos filipinos. Faço parte do Fórum sobre Informação e Democracia, em Paris. Em novembro de 2020, nós apresentamos 250 soluções técnicas e uma dúzia de soluções estruturais. Essa plataforma deveria usar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
E no que diz respeito ao pilar “jornalismo”?
Nós continuamos a fazer jornalismo investigativo. Ao mesmo tempo, concordei em ser uma coach para o Fundo Internacional para Mídia de Interesse Público, um achado global. Meu coach era o ex-CEO do The New York Times, Mark Thompson. Isso era para tentarmos arrecadar US$ 1 bilhão por ano e ajudarmos a mídia independente em países como o nosso. Você pode mudar... Você pede a nações democráticas, que agora dão 0,3% de sua ODA (ajuda de desenvolvimento no exterior). Apenas 0,3%. Podemos aumentar isso até 1%. Ou mais do que US$ 1 bilhão. E então podemos ajudar as empresas de notícias a sobreviverem. O último pilar é a nossa comunidade. Todas essas operações de informações seguem tática militar. Elas são parte da doutrina militar russa. Muitos países abusam do que chamam de táticas suaves, as operações psicológicas. Na era das mídias sociais, isso ganha muito mais poder. Nós escrevemos essas reportagens para contá-las à comunidade. Então, eles (leitores) ficam cientes de seu escopo global. Em relação à Rappler, estamos montando nossa plataforma tecnológica. Vamos fazê-la funcionar em novembro. Qual a proposta? Sermos capazes de nos basearmos em fatos, em evidências, em diálogos que ajudarão a fortalecer as democracias.
Em alguns países, como o Brasil, jornalistas são desacreditados pelo presidente e apoiadores. Como reverter isso? O Nobel pode ajudar?
Absolutamente! Isso vale tanto para vocês quanto para nós, filipinos. A tática de chamar o jornalismo investigativo de “fake news”... Como o poder foge da responsabilização. Eu espero que... Deixe-me dizer o que sempre digo. A real baixa com a mudança... Quando os jornalistas perdem os poderes para a tecnologia, as baixas reais são os fatos. Porque os algoritmos das plataformas de mídias sociais tornam os fatos discutíveis. Eles tratam os fatos da mesma forma que tratam as mentiras. De fato, eles favorecem as mentiras, em termos de distribuição.
Como avalia o impacto da disseminação de mentiras?
As mentiras duram menos, mas se espalham mais rápido e mais distante do que os fatos nas redes sociais. Quando usados, os algoritmos nos dividem e nos radicalizam. Quando você não tem fatos, você não pode ter verdades. Se você não tem essas coisas, não pode ter confiança. A confiança é a cola que mantém os seres humanos unidos. Se não tivermos isso, será impossível lidarmos com crises existenciais. Não apenas com a democracia, mas também com o coronavírus. O Brasil não tem feito um bom trabalho quanto ao coronavírus. Líderes fortes não o fazem. Para o coronavírus, você deve ter uma abordagem que envolva toda a sociedade. Você não pode criar conteúdo divisivo, não pode tornar os fatos discutíveis. Não pode manipular as pessoas. Olhem as mudanças climáticas. Teremos que lutar contra isso, juntos. E é aqui onde a liderança se destaca. A mentalidade de “nós contra eles”, a qual manipula fatos... Líderes assim recebem poder por um curto período, e, no fim, podem matar o seu povo. Não por meio da brutal guerra às drogas da qual Duterte é acusado, mas pelo assassinato com vírus. Mentiras podem matar! Por isso, defendo responsabilizar governos e plataformas.
Qual sua opinião sobre o presidente Bolsonaro e as ameaças à liberdade de expressão?
Eu acompanho líderes como Bolsonaro, Duterte e o ex-presidente Donald Trump. Eles possuem um estilo de liderança parecido. O que temos visto novamente são pessoas em todo o mundo exigindo melhorias, especialmente em relação ao coronavírus. Os líderes populistas e autoritários podem ser eleitos, explorando fragilidades das plataformas das redes sociais... O problema é que, quando você chega ao poder, se você não governar com fatos ou evidências, não poderá liderar nesta época precária, de coronavírus. Eu gostaria de citar uma pesquisa sobre propaganda computacional da Universidade de Oxford. Em janeiro deste ano, o estudo concluiu que um exército barato nas mídias sociais fez com que a democracia retrocedesse em 81 países. Em 2017, eram 27 países. Agora, são 81. Isso é o que as plataformas de redes sociais têm feito, mas serei otimista. Elas mostraram à humanidade que temos mais em comum do que diferenças em idiomas e culturas. As mesmas plataformas são manipuladas pelos brasileiros da mesma forma que pelos filipinos. Isso é da natureza humana. O problema é de escopo global. Há necessidade de solução multilateral. É preciso que os países se unam. Este é um dos outros momentos cruciais da história.
Como os jornalistas podem ser usados como ferramentas contra regimes autoritários?
Colaborem. Colaborem. Colaborem. Este novo mundo coloca todos os jornalistas do mesmo lado, independentemente da empresa para a qual trabalhem. Nós deveríamos colaborar mais em termos de reportagens investigativas. Entendo que as plataformas de tecnologia vivem momentos difíceis. Elas fizeram muito dinheiro e deveriam gastar parte dele para proteger a opinião pública.
Em um mundo repleto de mentiras, a senhora vê futuro promissor para o jornalismo?
O jornalismo é momento de se reinventar. Em janeiro de 2018, o governo tentou fechar a nossa empresa e convocou os anunciantes. Em abril, tivemos queda de 49% na receita publicitária. Fomos forçados a buscar a sustentabilidade. Não existe tempo melhor para ser jornalista. Se você é jornalista hoje, está ajudando a criar um mundo novo. O jornalismo sempre estará aí, porque é a coragem de falar a verdade ao poder.
O que diria aos estudantes de jornalismo?
Obrigada ao Comitê Nobel por escolher iluminar o que os jornalistas têm enfrentado. O quanto temos nos sacrificado. Jornalistas têm sido presos ou mortos por fazer seu trabalho. Se você é um jovem, esta é a melhor época para ser jornalista. Você mantém os padrões, a ética e a ambição do jornalismo. O que o jornalismo vai se tornar... É o que criamos! Protejam os fatos. Espero que o Brasil faça o mesmo. Depois do coronavírus, o mundo nunca mais será o mesmo. Vamos pisar os escombros do mundo que existiu. A questão é: que tipo de mundo vamos construir? Este é um desafio para jornalistas.