Conexão diplomática

Europa no ensaio do pós-Merkel

Os primeiros movimentos para a composição do novo governo federal na Alemanha valem a atenção da diplomacia brasileira, pelas indicações que oferecem sobre os rumos da locomotiva europeia com a aposentadoria da chanceler Angela Merkel. A eleição do último domingo confirmou o retorno do Partido Social-Democrata (SPD) à posição de maior bancada do Bundestag (Congresso). A União Democrata Cristã (CDU), de Merkel, volta à oposição, depois de 16 anos, e se deita no divã. Terceira e quarta força política, respectivamente, Verdes e liberais deram a largada para as conversações formais: costuram acordos entre si, de modo a entrar com maior peso numa coalizão que deve ter na cabeça o líder do SPD, Olaf Scholz, ministro das Finanças e vice-chanceler no governo que se despede.
Pela ótica do Planalto e do Itamaraty, antes mesmo de definições quanto a nomes, estão no programa que venha a ser fechado os recados que interessam. E o mais claro, desde já, é que se firma como viga-mestra do debate estratégico a transição para a economia pós-carbono — seja na Alemanha, seja na Europa. Na ação imediata, a aproximação entre os ecopacifistas e o Partido Liberal Democrata (FDP) tem por foco a questão mais consensual na sociedade alemã: as mudanças climáticas. Os Verdes deverão fazer de seu líder, Robert Habeck, o vice-chanceler. Possivelmente, como ministro das Relações Exteriores.
Nos próximos anos, a União Europeia (UE) se voltará para Berlim no exercício de identificar os contornos da nova ordem pós-Merkel. O Brasil acompanha os ensaios tendo em perspectiva a ratificação do acordo comercial assinado em 2019 entre UE e Mercosul.

Ficou no “quase”

Os Verdes foram a legenda que mais cresceu nas urnas em relação a quatro anos atrás. A democracia-cristã, sem “Mutti” (mamãe) Merkel na cédula, foi quem mais perdeu votos. Para os ecopacifistas, porém, o terceiro lugar tem sabor algo amargo. No ano passado, chegaram a liderar as pesquisas de opinião, empurrados pela popularidade da agenda ambiental e por um grau de saturação dos eleitores com décadas de alternância restrita a CDU e SPD.
Seja como for, os dois “volksparteien”, como são chamados os partidos maiores, despencaram para o patamar dos 20%. Antes donos de mais de 70% do eleitorado, hoje mal somam 50%. Será nessas novas condições, de um equilíbrio político mais complexo, que o vice de Merkel terá de compor o governo. No campo minado da economia doméstica, terá de encontrar caminhos para honrar a promessa de campanha de elevar o salário mínimo.

Namoro ou amizade?
Por aqui, as redes sociais foram terreno fértil para especulações sobre a relação privilegiada do ex-presidente Lula com os “companheiros” do SPD. A simpatia antecede a fundação do PT e se assenta nas relações entre o líder metalúrgico do ABC e os poderosos sindicatos alemães.
Descendentes da I Internacional, de Karl Marx, os social-democratas ainda são chamados na Alemanha de “camaradas”. Sua agenda, porém, distanciou-se, em direção ao centro, da assumida nos anos 1970 por Willy Brandt, o primeiro deles a chefiar um gabinete na Alemanha (Ocidental, até 1991) do pós-guerra. Ainda assim, não será indiferente para o novo governo de Berlim uma disputa entre Lula e Bolsonaro, em 2022.

“Patinho feio”
Pela ótica do Planalto, o cenário político alemão pode parecer algo frustrante, à primeira vista. Em julho, o presidente recebeu — fora da agenda oficial — uma deputada da Alternativa para a Alemanha (AfD), legenda de ultradireita que despontou em 2017 como a novidade no plenário do Bundestag. Na ponta do lápis, o partido experimentou no domingo um ligeiro recuo, em especial na antiga metade ocidental do país.
Em contrapartida, a extrema-direita amplificou a escalada nos estados que integraram a extinta Alemanha Oriental (comunista). Consolidou posições e saiu como campeã de votos em dois deles, a Saxônia e a Turíngia — esta última, a primeira e única região do país governada pela Esquerda, o partido formado por ex-comunistas do Leste e dissidentes do SPD.
Entre passos à frente e atrás, a AfD parece repetir a trajetória dos Verdes e da Esquerda, que acrescentaram cores ao mosaico do Bundestag, tricolor por mais de três décadas. A legenda ecopacifista, surgida nos anos 1980 de protestos contra armas nucleares, ingressou logo no parlamento, mas só em 1998 participou de um gabinete federal, com Gerhard Schröder (SPD) como chanceler. Os neocomunistas têm sua bancada desde a reunificação alemã, em 1991, mas até esta eleição encarnavam o “patinho feio” — um partido considerado inaceitável como parceiro pelos demais. Hoje, lideram um governo de estado no Leste e, pela primeira vez, chegaram a ser vistos como opção para sócio menor em uma coalizão federal do SPD e Verdes.