O americano Julius Jones tinha acabado de completar 19 anos de idade quando foi preso, julgado e condenado à morte pelo assassinato de um empresário no Estado do Oklahoma, em 1999.
Jones, que hoje tem 41 anos, sempre negou envolvimento no crime. Mas, ao longo de duas décadas, nenhuma de suas várias tentativas de apelação teve sucesso, e ele passou a metade da vida no corredor da morte.
Seu caso tinha caído no esquecimento quando, em 2018, o documentário The Last Defense (A Última Defesa), exibido pela rede de TV ABC, voltou a se debruçar sobre detalhes do crime, da investigação e do julgamento, apontando problemas no processo e lançando dúvidas sobre a participação de Jones.
Desde então, a campanha Justice for Julius (Justiça para Julius) vem atraindo o interesse da imprensa e de ativistas, políticos e celebridades, convencidos da inocência de Jones.
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A lista de celebridades que se manifestaram em sua defesa inclui várias estrelas do basquete americano, a atriz Viola Davis, que foi uma das produtoras do documentário, o apresentador de TV James Corden e Kim Kardashian West, que chegou a visitá-lo na prisão no ano passado. Uma petição no site change.org pedindo justiça para Jones já tem mais de 6,4 milhões de assinaturas.
O interesse no caso de Jones, que é negro, também ocorre em um momento em que ganha força nos Estados Unidos o debate sobre as disparidades raciais no sistema de justiça criminal e na pena de morte.
No mês passado, uma comissão responsável por analisar pedidos de liberdade condicional e perdão recomendou, por três votos contra um, que o governador de Oklahoma, o republicano Kevin Stitt, comute a pena de Jones para prisão perpétua, com a possibilidade de liberdade no futuro.
Ao comentar a recomendação para que a sentença de Jones seja comutada, o presidente da comissão, Adam Luck, disse acreditar que, em casos de pena de morte, não deve restar qualquer dúvida de que o condenado é culpado. "E eu tenho dúvidas sobre esse caso", afirmou.
Mas o governador disse que só tomará sua decisão após uma audiência de clemência, na próxima segunda-feira (1/11), quando Jones terá a oportunidade de se pronunciar em sua própria defesa. Será a última tentativa de evitar sua execução, que está marcada para 18 de novembro.
O crime
O crime pelo qual Jones foi condenado foi brutal e chocou a cidade de Edmond, na região metropolitana de Oklahoma City, que na época tinha cerca de 68 mil habitantes.
Na noite de 28 de julho de 1999, Paul Howell, um executivo de 45 anos de idade, estacionava o carro na frente da casa de seus pais quando foi abordado por um desconhecido com uma arma.
Howell estava acompanhado de suas duas filhas pequenas, de sete e nove anos de idade, e de sua irmã, Megan Tobey. Segundo relatos da família, o homem "caminhou até o carro, apontou uma arma para a cabeça de Paul e puxou o gatilho".
Depois de atirar uma segunda vez, o agressor fugiu, levando o carro da vítima. Howell foi declarado morto quatro horas depois do ataque.
A irmã de Howell disse à polícia que o assassino era um jovem negro que vestia uma camiseta branca, um gorro preto e uma bandana vermelha cobrindo o nariz e a boca. Um segundo homem dirigia o carro no qual o agressor estava antes de abordar Howell.
O assassinato de um membro conhecido da comunidade desencadeou uma caçada da polícia de Edmond em busca de dois suspeitos que correspondessem à descrição da testemunha.
Dois dias depois, o carro de Howell foi encontrado em um estacionamento próximo a um desmanche de veículos. Informantes da polícia apontaram para Jones e Christopher Jordan como autores do crime. Segundo eles, Jordan era o motoristas, e Jones, o atirador.
Para os atuais advogados de Jones, esses informantes iniciais tinham interesse em testemunhar contra seu cliente, evitando assim escrutínio de suas próprias atividades ilegais.
Mas, ao revistar a casa da família de Jones, a polícia encontrou a arma do crime enrolada em uma bandana vermelha. Jordan foi preso em 30 de julho, e Jones no dia seguinte.
Álibis e provas
Jones, que na época estudava na Universidade de Oklahoma, afirma que, na hora do crime, estava em casa, jantando com a família e jogando Banco Imobiliário.
Esse álibi foi confirmado por sua irmã, Antoinette, em declaração juramentada, por escrito. Mas ela nunca foi chamada a dar seu testemunho no julgamento.
Segundo depoimentos de seus pais, Jones cresceu como um menino estudioso, que frequentava a Igreja e gostava de praticar esportes. Mas, naquele ano, ele havia se envolvido em alguns crimes menores, como furtos.
"O que é errado é errado. Eu não deveria ter cometido (os furtos). E eu não estou tentando esconder de ninguém que eu feri a lei", admitiu o próprio Jones no documentário The Last Defense. "Mas isso não faz de mim um assassino."
Em declaração por escrito à comissão que analisa pedidos de perdão, Jones disse que não é culpado pela morte de Howell. "Eu não tive qualquer participação em sua morte, e a primeira vez que o vi foi na televisão, quando sua morte foi noticiada", escreveu.
"Eu passei os últimos 20 anos no corredor da morte por um crime que não cometi, não testemunhei e no qual não estava presente", disse.
A defesa de Jones insiste que Jordan, que havia sido seu colega no Ensino Médio, é o verdadeiro culpado da morte de Howell. Segundo os advogados, Jordan pediu para dormir na casa da família de Jones no dia seguinte ao crime, quando, suspeitam, ele teria aproveitado para esconder a arma e a bandana na residência.
Os advogados de Jones ressaltam que Jordan usava o cabelo mais longo, o que corresponde à descrição do criminoso feita pela testemunha, segundo a qual as pontas do cabelo do agressor apareciam para fora do gorro. Jones, ao contrário, havia sido fotografado poucos dias antes do crime com o cabelo bem curto, em uma foto que nunca foi mostrada ao júri.
Jordan e seus advogados negam essas acusações e dizem que ele apenas dirigiu o carro e não teve envolvimento no disparo que matou Howell. Quando Jordan foi preso, ele confirmou à polícia essa versão dos fatos, que também tinha sido apresentada pelos informantes iniciais.
Apesar de a própria polícia ter admitido que o depoimento de Jordan tinha várias contradições, ele acabou se transformando na principal testemunha do julgamento, quando repetiu a acusação de que Jones era o autor dos disparos. Jordan acabou recebendo uma pena mais branda, e foi libertado após 15 anos de prisão.
O julgamento
Mesmo antes da prisão de Jones, a imprensa local já havia começado a pedir pena de morte para o autor do crime. O caso ficou nas mãos de Robert Macy, um promotor apelidado de "Cowboy Bob" e renomado por ter obtido um dos maiores números de condenações à morte no país. Ao longo de sua carreira, Macy, que morreu em 2011, enviou 54 réus para o corredor da morte.
Anos depois, uma análise feita pela Universidade de Harvard identificou irregularidades em vários desses casos. Alguns desses réus acabaram retirados do corredor da morte, quando ficaram comprovados os problemas em seus julgamentos
O julgamento de Jones foi realizado em 2000, no ano seguinte ao crime. Ao contrário do promotor, a equipe de defesa era composta por advogados inexperientes, que jamais haviam participado de um julgamento com possibilidade de pena capital.
Essa é uma situação comum nos casos de pena de morte nos Estados Unidos. Segundo Robert Dunham, diretor-executivo do Death Penalty Information Center (Centro de Informações sobre a Pena de Morte), que compila dados sobre a prática no país, praticamente todos os presos no corredor da morte são pobres.
"Por causa disso, não podem escolher seus advogados. É o mesmo Estado que os está processando que designa quem seu advogado vai ser", diz Dunham à BBC News Brasil.
"Na maioria dos casos, recebem um defensor público sem verbas ou um advogado indicado pelo tribunal, e que depende de não irritar esse tribunal para conseguir futuros trabalhos."
Segundo os atuais advogados de Jones, Dale Baich e Amanda Bass, que assumiram seu caso em 2016, seus defensores no julgamento não confrontaram o uso, pela acusação, de depoimentos de informantes "questionáveis", nem chamaram nenhuma testemunha de defesa.
"Ele não tinha dinheiro para pagar um advogado próprio, então o tribunal designou advogados que tinham dezenas de outros casos na época, estavam extremamente sobrecarregados", diz à BBC News Brasil a diretora da campanha Justiça para Julius, Cece Jones-Davis.
"Eles não tinham recursos, nunca fizeram uma investigação (sobre detalhes do caso). Quando chegaram no julgamento, literalmente, deram o caso por encerrado. Não chamaram testemunhas, não fizeram nada", afirma Jones-Davis, que não tem parentesco com Julius Jones. Os jurados foram unânimes ao decidir pela pena de morte.
Novas evidências
Desde o julgamento, surgiram novas evidências que, segundo a defesa, apontam para a inocência de Jones. No ano passado, um presidiário do Estado do Arkansas que havia cumprido pena com Jordan disse que, em 2009, Jordan confidenciou que outro homem estava no corredor da morte por um crime que ele havia cometido.
O homem disse que só percebeu que o então companheiro de prisão estava falando sério quando assistiu ao documentário The Last Defense e reconheceu Jordan. Antes dele, dois outros presidiários em Oklahoma que também cumpriram pena ao lado de Jordan já haviam relatado ter ouvido, em datas separadas, ele confessar o assassinato de Howell.
A defesa de Jones ressalta que esses três homens deram suas declarações em datas diferentes, não se conhecem e nem nunca encontraram seu cliente. Além disso, não receberam nenhuma vantagem em troca de seus depoimentos e, por isso, segundo os defensores de Jones, não teriam nenhum motivo para mentir.
Os advogados de Jordan negam que ele tenha feito essas confissões a companheiros de prisão.
Os atuais defensores de Jones também acreditam que o julgamento de 2000 foi marcado por racismo. Em um crime em que a vítima era branca e o acusado negro, 11 dos 12 jurados eram brancos.
Anos depois, foi revelado que um desses jurados usou um termo racial pejorativo para se referir a Jones, ao dizer que o julgamento era "uma perda de tempo" e que a polícia deveria simplesmente ter matado o réu.
O final da década de 1990 foi marcado pelo endurecimento das penas para crimes no país e também por estereótipos em relação a jovens negros, descritos por parte da imprensa como "superpredadores". Hoje há o reconhecimento que as políticas daquela era agravaram as disparidades raciais na justiça criminal.
"Nos Estados Unidos, se a vítima é branca, é muito mais provável que o Estado vá pedir a pena de morte", afirma Dunham, ao ressaltar que, em casos de assassinatos interraciais, réus brancos quase nunca são sentenciados à pena capital por matarem vítimas negras.
"Mas réus negros, e principalmente jovens homens negros, são desproporcionalmente sentenciados à morte por matar vítimas brancas", observa Dunham.
Atualmente, mais de 2,5 mil prisioneiros estão no corredor da morte nos Estados Unidos, dos quais 41% são negros, percentual bem acima dos 13% de negros na população geral.
Nos últimos anos, também vêm ganhando notoriedade vários casos de inocentes sentenciados à morte que, depois de décadas à espera da execução, conseguiram provaram que eram inocentes e haviam sido condenados injustamente.
Desde 1972, foram executadas no país 1.537 pessoas, e outras 186 que estavam no corredor da morte provaram que haviam sido condenadas injustamente. Ou seja, a cada 8 pessoas executadas, uma escapou do corredor da morte ao provar a inocência.
O que diz a acusação
Mas, depois que um réu é sentenciado à morte nos Estados Unidos, é extremamente difícil apresentar novas evidências sobre o caso.
"Depois que o julgamento é encerrado, a apelação não é sobre culpa ou inocência, mas sim sobre se o julgamento seguiu a lei", diz à BBC News Brasil o diretor do grupo Death Penalty Action, Abraham Bonowitz.
"A maioria das pessoas na prisão ou no corredor da morte cometeu o crime que as levou para lá. Mas muitas não, e isso deveria nos deixar preocupados com o sistema inteiro", afirma Bonowitz, cujo grupo atua pela abolição da pena de morte.
Jones chegou a ter a data de execução marcada anteriormente, mas problemas nas drogas usadas na injeção letal em Oklahoma levaram à suspensão das execuções no Estado em 2015. Na época, um dos prisioneiros executados agonizou por mais de 40 minutos antes de morrer, em um caso que gerou comoção no país.
Agora, o Estado, que é o terceiro com o maior número de execuções na era moderna da pena de morte no país, se prepara para levar adiante as primeiras execuções desde aquela interrupção. Além de Jones, outros seis prisioneiros deverão ser executados em Oklahoma nos próximos meses.
O atual procurador geral do Estado (cargo que, nos Estados Unidos, é eleito) mantém a posição de seus antecessores de que Jones merece a pena de morte. Promotores e o juiz envolvidos no julgamento original também defendem que ele seja executado.
"Nos últimos anos, Julius Jones e seus advogados se dedicaram a uma campanha coordenada e preocupantemente bem-sucedida de informações falsas", escreveu o procurador do Condado de Oklahoma, David Prater, à comissão de perdão que recomendou comutar a sentença de Jones.
"O veredito do júri não deve ser alterado. Julius Jones não ofereceu misericórdia a Paul Howell, e ele não apresenta nenhuma razão válida para merecer (misericórdia) agora. O Estado de Oklahoma se opõe à comutação", conclui o procurador.
O que diz a família da vítima
A família de Howell também diz não ter dúvida de que Jones é culpado pelo crime e deve ser executado. Diante da renovada atenção que o caso passou a receber, a família lançou sua própria campanha, "Justice for Paul Howell" (Justiça para Paul Howell), e criou um site para rebater os argumentos dos que defendem a inocência de Jones.
Os responsáveis pela campanha não responderam aos pedidos de entrevista encaminhados pela BBC News Brasil.
Mas em algumas entrevistas à imprensa local, a irmã, o irmão e a filha de Howell disseram que a publicidade em torno do caso só aumenta sua dor e lamentaram o envolvimento de celebridades com milhões de seguidores nas redes sociais e que, segundo elas, não ouviram ambos os lados e têm "informações incompletas" sobre o caso.
Em carta divulgada após a comissão de perdão ter recomendado comutar a pena de Jones, a família disse estar "extremamente decepcionada, desiludida e entristecida" com a decisão, descrita como "irresponsável e tendenciosa".
"O fato de a comissão fazer uma recomendação que, mesmo que remotamente, sugere que Julius Jones é inocente, ou que permita ou mesmo considere a possibilidade de que ele seja libertado da prisão e retornado às ruas, é incompreensível e coloca em perigo a segurança da família Howell e de todos os moradores de Oklahoma", diz a carta.
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